35 A CRISE – DIÁLOGO COM AS SOMBRAS HERMÍNIO C. MIRANDA

O doutrinador precisa estar atento aos primeiros sinais de que o Espírito manifestante começa a ceder, para que ele próprio —doutrinador — possa reformular a sua tática.
Espíritos muito agressivos e violentos manifestam-se, de início, irritadissimos, em altos brados, dando murros na mesa, proferindo ameaças terríveis.
Não é possível, nessa condição, argumentar com eles.
É preciso esperar que o vagalhão impetuoso do rancor se desfaça, por si mesmo, na praia mansa.
Se opomos resistência, a explosão é inevitável e o dano pode ser irreparável.
É preciso ter paciência e esperar.
Não ficar mudo ante a sua cólera, mas não opor grito contra grito, murro contra murro.
A cólera passa, pois é muito difícil sustentá-la indefinidamente contra quem não nos oferece resistência.
Por este motivo, são tão importantes os primeiros diálogos de cada manifestação.
Mesmo irritado, esbravejando, ameaçador, o Espírito deve ser recebido com respeito e carinho.
Se a conversa for bem orientada, ele nos respeitará e, aos poucos, irá compreendendo que não precisa gritar seus argumentos.
Nesses casos, costumo dizer, aos queridos companheiros desatinados, que só grita aquele que não tem razão.

O fato, porém, de reduzir o volume de seu vozerio, não significa que já esteja resolvido o seu problema; ao contrário, é a partir desse ponto que começa a fluir o diálogo que poderá levar-nos a um entendimento com ele e ao seu eventual despertamento.
Antes disso, a argumentação é inútil, porque ele só deseja gritar, e, se o tentarmos, falaremos juntos, ou ele não nos ouvirá, pensando apenas no que nos dirá a seguir.
Mas, pelo menos, com a voz no tom normal, abre-se uma perspectiva de entendimento, mesmo que ele esteja bem longe de entregar-se à verdade.
Encontra-se ainda convicto da justeza de sua posição, e a batalha verbal poderá ser muito longa; contudo, já é possível uma conversa entre dois seres civilizados.

De certo ponto em diante, porém, a sensibilidade do doutrinador o advertirá de que o manifestante começa a ceder: sua cólera esvaziou-se, sua palavra não tem mais aquele fator de convicção, seu Espírito parece cansado e disposto a uma acomodação.
Não que ele o reconheça nesses termos, pois insistirá e poderá ter ainda surtos de reação, lutando interiormente consigo mesmo, temendo ser “dobrado” pelo doutrinador — o que é, para ele, uma humilhação — mas, ao mesmo tempo, desejando-o intimamente, ou inconscientemente.

Aos primeiros sinais de que a reação salutar começou, o doutrinador deve abandonar sua técnica de contestação e argumentação, para entrar na fase de doutrinação propriamente dita.
É hora de falar-lhe com carinhosa franqueza, tentando mostrar-lhe a inutilidade de seu desesperado esforço de lutar contra Deus e, portanto, contra seus próprios interesses pessoais.
É hora de fazer um apelo para que ele se detenha um pouco, para pensar; adverti-lo de que não precisa “converter-se” à nossa crença, aos nossos princípios.
Não iludi-lo com a paz imediata, que ele sabe muito bem ser impossível: a luta continua à sua espera, intensa e dolorosa como nunca, só que, uma vez despertado para a realidade, ele poderá iniciar o período do sofrimento redentor e não daquele que ainda mais o mergulha nas profundezas do erro.
O momento é oportuno, também, para dirigir o seu pensamento para a sabedoria eterna do Evangelho.
Não que só agora seja possível falar-lhe do Cristo: éque só agora os ensinamentos de Jesus começam a ter, para ele, um sentido novo, aceitável.
Mais do que nunca, ele deve estar certo da nossa absoluta sinceridade e do nosso afeto desinteressado.
Ele precisa saber que não estamos pelejando naquele momento, por uma causa ou pelos interesses de um obsidiado, mas por ele próprio, obsessor.

Argumentava eu, certa vez, com um desses companheiros desarvorados, que perseguia sem tréguas uma pobre criatura, quando ele me perguntou, irritado:

— Você é advogado dela?

— Não — disse eu —, sou advogado seu!

Sabem que esta simples frase o levou a ver-me sob nova luz e a aceitar-me? Daí por diante, começou a ceder.

Percebemos que a fase da aceitação chega por pequeninos e quase imperceptíveis sinais: começam a ouvir-nos com um pouco mais de atenção, a voz desce de tom, aceitam um ou outro argumento nosso, e chegam até a uma ou outra palavra de velada e timida afeição ou respeito.

Um diálogo um tanto difícil, com o brilhante e combativo Espírito de um ex-inquisidor, foi suspenso, certa vez, a meu pedido, a fim de que eu pudesse fazer uma prece.
Como sempre, ele a ouviu em silêncio, pois a prece tem esse condão de fazer calar a imensa maioria dos Espíritos desajustados, mesmo os mais violentos.
Terminada a rogativa ao Alto, ele disse, como se pensasse em voz alta:

– Uma coisa é preciso reconhecer: você ora com sinceridade.
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A partir desse ponto, estarão mais acessíveis, mas a batalha pode durar ainda muito tempo, alongar-se por outras oportunidades de manifestação e, mesmo assim, não sabemos, muitas vezes, se, ao partirem, eles estão realmente convencidos e prontos a mudar de rumo, ou se apenas levam uma disposição para reexaminar suas convicções.
De qualquer maneira, porém, levarão no coração as sementes de um futuro, que pode ser próximo ou remoto, mas que virão fatalmente a germinar, um dia, em explosões de luz.

Ao cabo dessa fase de maior receptividade aos pensamentos e à afeição do doutrinador, pode ocorrer, então, a crise.
Ë o momento mais dramático da manifestação: o Espírito começa a sentir que não terá forças para resistir aos apelos da Verdade.
Está, ainda, sobre o fio da navalha, como diz a expressão inglesa.
Sente fugir o terreno em que pisa.
De um lado, a perder-se nas trevas do passado, um terrível e doloroso acervo de loucuras e desenganos lastimáveis, ilusões desastrosas e erros clamorosos.
Do outro, a incógnita do porvir.
Ele se debate entre os dois abismos: o passado e o futuro.
Ambos o chamam, ambos o atraem.
Que decisão tomar? Permanecer na faixa do erro que, de certa forma, o abriga da terrível realidade, ou lançar-se, de uma vez, aos braços da dor que redime? É preciso respeitar sua hesitação e assisti-lo no seu estado de pânico.
Entre um mundo que rui e outro que ainda não construímos, a sensação de atordoamento é inevitável, mesmo nos mais valorosos Espíritos.
Temos que entender, também, que quase todos eles estão absolutamente convencidos de sua própria verdade.
Ou estavam, até o momento.
O fato de permanecerem envolvidos em erros de julgamento aflitivos, não lhes tira o valor, não lhes reduz o conhecimento, não exclui o fato de que são Espíritos, às vezes altamente qualificados e experientes; apenas — e isso é tudo — operam desastrosamente, do lado negativo da faixa vibratória da vida.
Não é fácil, para aquele que está convicto da legitimidade de seus caminhos, pular por cima da linha invisível que separa o bem do mal.
Afinal, o livre-arbítrio assegura-nos, a todos, o direito de escolha.
A decisão é difícil, mesmo.
Tenhamos paciência e procuremos ajudá-lo a tomá-la sem precipitação, mas com firmeza.

Certa vez, recebemos um companheiro excepcionalmente violento e agressivo.
Acostumara-se ao poder incontestado, a mandar, a punir, a intimidar, tanto na carne, quanto no espaço.
Ameaçava, gritava, dava murros.
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Deixei-o falar, interpondo apenas uma ou outra observação, a fim de que o ímpeto do vagalhão se quebrasse contra a branca areia da paciência e do amor.
Claro que interpreta a minha calma como covardia.
Desesperançado de arrastar-me para o debate estéril, no campo puramente filosófico, promete, afinal, pensar no assunto, pois acabou tocado pelo sentimento de afeição que encontrou entre nós.
Estava ameaçando ceder, mas era ainda muito cedo para uma decisão final, como vimos nas próximas sessões.

Na semana seguinte, voltou novamente agressivo e irritado, alegando que quase havia caído, por causa da nossa afeição, mas que conseguira reagir.
Não está convencido, mas concordou em não gritar mais e a não nos incomodar, dali em diante, com a sua presença.
Seguirá seu caminho de sempre, e acrescentou:

— Poderia enganar você e dizer que estou convertido, mas não quero fazer isso.

É honesto: responde com dignidade à nossa tentativa de aproximação e entendimento; agradeço sua lealdade e ele segue procurando atrair-me para o debate.
Qualquer argumento que lhe apresente, ele o “vira” à sua maneira, para servir aos seus propositos e justificar sua filosofia de vida.
Faz pouco da minha inteligência, que ridicularizà à vontade.
Bem que se esforçou — diz ele — em mostrar-me o caminho: somente se deixaria convencer pela argumentação; nada mais.

O doutrinador precisa estar preparado para situações assim.
Em primeiro lugar, como já vimos, o clima da discussão é o que convém a esses irmãos atormentados.
A conversa mansa e a busca de entendimento não interessa aos seus propósitos.
Em segundo lugar, é preciso considerar que nada temos a dizer-lhes que eles não saibam.
Conhecem perfeitamente a sua condição de Espíritos desencarnados, a responsabilidade que assumiram perante a lei, o conceito da reencarnação, a imortalidade, a existência de Deus.
São inteligentes e experimentados.
Não é.
pois, pelos caminhos frios da mente que chegaremos a eles e, sim, através do roteiro luminoso do amor fraterno.
E é precisamente por isso que, consciente ou inconscientemente, procuram arrastar-nos para o debate:

terreno firme, que conhecem e no qual podem esgrimir à vontade seus argumentos, de um ponto de vista vantajoso; quanto ao campo sentimental, consideram “perigoso”, porque está minado de imprevistos.
Quando menos se espera, surge do passado uma lembrança esquecida, o vulto espiritual de um ser a quem muito amaram, o apelo de uma voz cariciosa.

A certo ponto, cesso a conversa e oro.
Ele ainda insiste em falar e prosseguir o debate, mas acaba calando-se.
Quando tenta reagir “físicamente”, está preso pelos pulsos por um laço fluídico, invisível a nós, mas que o mantém fortemente contido, por mais que se esforce.
Volta a esbravejar, ameaçar.
Começa a crise maior.
É evidente que tenta, ainda, reagir, e procura acalmar-se, dizendo que estou me esgotando inutilmente na tentativa de dominá-lo.
Não tenho a menor intenção de dominá-lo e, sim, de despertar o seu Espírito.
Dou-lhe prolongados passes, enquanto a crise se adensa e aprofunda.

Subitamente, ele começa a gritar que não quer e não pode fazer aquilo, e informa, realmente em pânico, que tudo está ruindo em torno dele e dentro dele.
Por fim, chora, desesperado, e parte.

Este irmão voltou mais uma vez, na semana seguinte.
Apresenta-se completamente desarvorado, mas ainda procura iludir-se, tentando convencer-se de que está vivendo um pesadelo, do qual vai acordar a qualquer momento.
Digo-lhe que, ao contrário, agora é que ele acordou de um pesadelo multissecular.
Ele está arrasado.
Confessa que, pela primeira vez, tem medo: está vazio e quer dormir, para esquecer.

É o grande momento da compreensão, da ternura, do amor fraterno.
Muito respeito pela sua crise, muito carinho com as suas dificuldades, seus temores, seus desesperos.
Ele sabe, ou pressente, o que o espera, em termos de resgates dolorosos, que se estenderão pelos séculos futuros, até onde e quando, somente Deus saberá.
É preciso ajudá-lo, com muita paciência, levá-lo, terna-mente, a dar o passo final, que o tira de cima do fio da navalha e o coloca no lado positivo da fronteira da nova existência, cujas perspectivas se abrem diante dele, mas que ele ainda não consegue lobrigar com precisão.
É necessário assegurar-lhe, nesse momento, a presença infalível de Deus em nossas vidas, o amor indubitável do Cristo, que deseja que o pecador se salve, e não que seja condenado a conviver com angústias que parecem eternizar-se.
Além do mais, como temos visto, nunca falta, nessa hora, a presença de antigos e esquecidos amores: mães, esposas, irmãos, amigos, que nos ajudam na fase final da doutrinação.

Este é o momento mais emocionante de todo o trabalho, O Espírito, em crise, precisa, mais do que nunca, de uma palavra de sincera afeição, mesmo que ainda tente uma reação desesperada, de última hora.

Num caso desses, o irmão entrou em crise e começou a monologar, enquanto fico ao seu lado, em silêncio reverente.
Depois de algum tempo, ele se volta para mim — e isto me comove profundamente — e me propõe uma visita minha aos seus domínios.
Diz que determinará aos seus guardas que me deixem passar livremente.

— Você sabe — acrescenta — que eu não te farei mal algum.

Começa, em seguida, a ver cenas do seu passado distante.
Ainda reage, tentando sugestionar-se de que é forte e não vai “cair”, mas sente um arrastamento incoercível,

— E vocês — dirige-se a companheiros invisíveis — com essas caras luminosas, que estão aí me olhando?

E para mim:

— E você? Não diz nada?

Só sei dizer duas palavras:

— Meu amigo!

Ele a repete, e depois esbraveja:

— Maldito lago!

As visões o atormentam implacavelmente.
É o lago abençoado em que pregara o Cristo.
Está arrasado, e diz que precisa recompor-se, pois seus soldados estão lá fora e não devem vê-lo naquele estado.
Chama-me de traidor, mas não sinto nele nenhum ódio:

é apenas desespero.
Alguém, de elevada condição espiritual, uma mulher, o espera no limiar da nova existência, mas ele ainda reluta.
Pensa em pedir uma licença aos seus chefes e afastar-se, por algum tempo, do “trabalho”.

Estas crises caracterizam-se pela revolta, ante o inevitável.
Há, porém, as que precipitam no arrependimento e no remorso mais patético.

A um desses pobres irmãos desarvorados, que se manifestara com requintes de arrogância e ironia, vimos obrigar o médium a ajoelhar-se, em pranto.
Julga-se um abutre sem remissão.
Tivera o privilégio de viver na época do muito amado Francisco de Assis, a quem conhecera pessoalmente, mas cuja mensagem, de amor sem limites, não conseguira ainda assimilar; ao contrário, dedicava-se, com todo o poder de sua inteligência e de seus conhecimentos, à pavorosa técnica do “crime religioso”, segundo conceituação de um dos nossos companheiros.

Em suma: a crise manifesta-se de muitas maneiras, mas dentro de certas configurações padronizadas: arrependimento, temor, revolta ou deslumbramento.
Vem sempre acompanhada de profundas emoções; não é um momento que o Espírito consiga viver com indiferença e frieza, sendo, por conseguinte, a oportunidade preciosa, que o doutrinador não pode deixar passar, para alcançá-lo através do sentimento, da emotividade, do afeto.
Trate-o com muito carinho, guie os seus passos vacilantes pelo novo caminho que começa a trilhar.
Não o force, mas procure não desperdiçar a ocasião de estimulá-lo a tomar a decisão que vai mudar sua vida.
Não tente enganá-lo, acenando-lhe com um paraíso imediato, que ele sabe não estar ao seu alcance.
Não o atemorize com ameaças, não carregue nas cores do sofrimento que o espera.
Seja simples, humano, amoroso, realista.
Ofereça-lhe a sua ajuda, mencione a assistência espiritual que estará ao seu dispor, não para fazer por ele, mas para fazer com ele, o trabalho de reconstrução que o aguarda.
Lembre a necessidade da prece constante, da confiança, da coragem otimista.
Destaque os reencontros espirituais com os seus amados, que há tanto tempo o esperam.
Não se esqueça de que a dor e o temor o atormentam.
Coloque em seu coração a semente da esperança e mostre-lhe, confiante, as perspectivas da paz.
A essa altura, ele não pode mais voltar sobre seus passos, para a proteção feroz da sua antiga organização ou do seu regime de irresponsabilidade pessoal.
Seus ex-comparsas não mais o receberiam, senão para castigá-lo pela sua “fraqueza”.
Ele não pode mais contar com aqueles que pensava serem seus amigos, e aqueles que o esperam, para ajudá-lo, ele não os conhece muito bem, ou então, sente diante deles uma vergonha mortal, pela enormidade de seus desvarios.

Além do mais, ele teme vinganças cruéis, pois esse foi o clima em que viveu durante séculos, ou milênios; ou assusta-se ante a perspectiva de encarnações extremamente penosas, em corpos deformados, cegos ou mutilados.

Um típico exemplo desses, quando o Espírito fica sobre a linha, contemplando as duas perspectivas — passado e presente — tenho-a num caso de que tratamos.

Era extremamente rebelde, rude, agressivo e violento, fora também um inquisidor.
Ao despertar para a verdade, confessa a aflição que experimenta, diante da enormidade de suas culpas.
Não se julga digno da afeição de Espíritos tão elevados, como o de sua mãe.
Está perplexo ante a cegueira espiritual que, por tanto tempo, o impeliu a cometer tantos e tão graves desatinos, e o impediu de atender ao apelo de seus verdadeiros amigos, dos quais nem percebia a presença junto de si.
Preocupa-se com aqueles que liderava, no mundo das sombras, que, a seu ver, ficariam agora ao abandono.
Digo-lhe que Deus vela por todos nós e que uma tarefa que poderia desempenhar, mais tarde, seria precisamente a de ajudar a recuperar os irmãos que ainda ficaram nas sombras.
Pede que oremos por ele e que o perdoemos pelo tratamento que nos deu, de início, com a sua agressividade.
Também eu lhe peço minhas desculpas, por uma ou outra palavra mais enérgica, necessária, às vezes, para o despertamento.
Ele chora, pela primeira vez em muito, muito tempo, segundo nos informa.
E parte.

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