Livro Céu e o Inferno – Primeira Parte – CAPÍTULO VI Doutrina das Penas Eternas – Allan Kardec

Origem da Doutrina das Penas Eternas

1 — A crença na eternidade das penas perde terreno cada dia, de tal maneira que, mesmo não sendo profeta, podemos prever o seu fim próximo.
Ela tem sido combatida por argumentos tão poderosos e decisivos, que parece quase supérfluo ocuparmo-nos dela hoje, bastando que a deixássemos extinguir-se por si mesma.
Não se pode, entretanto, esquecer que, por mais caduca que ela pareça, ainda permanece como o centro de resistência dos adversários das idéias novas, o ponto que eles defendem com mais ardor porque é um dos seus flancos mais vulneráveis, e porque prevêem as conseqüências da sua queda.

Nesse sentido, a questão merece um exame sério.

2 — A doutrina das penas eternas, como a do inferno material, teve a sua razão de ser quando podia servir de freio para os homens intelectual e moralmente pouco desenvolvidos.
Da mesma maneira que eles não podiam impressionar-se muito com a idéia de penas espirituais, também não se impressionariam com penalidades temporais.
Não compreenderiam mesmo a justiça das penas graduais e proporcionais, porque não estavam aptos a aprender as nuanças quase sempre sutis entre o bem e o mal, nem o valor relativo das circunstâncias atenuantes ou agravantes.

3 — Quanto mais próximos do estado primitivo, mais materializados são os homens.
O senso moral é o que se desenvolve mais tardiamente.
Por isso mesmo só podem fazer uma idéia muito imperfeita de Deus e de seus atributos, e uma idéia igualmente vaga da vida futura.
Assemelham Deus à sua própria natureza, figurando-o como um soberano absoluto, tanto mais temível quanto é invisível, como um déspota que, oculto no seu palácio, jamais se mostra ao povo.

Deus só é então poderoso pela força material, porque eles não compreendem o poder espiritual.
Só o concebem armado com o raio, em meio aos clarões da tempestade, semeando à sua passagem a ruina e a desolação à maneira dos conquistadores invencíveis.
Um Deus de mansuetude e de misericórdia não seria Deus, mas um ser débil que não poderia fazer-se obedecer.
A vingança implacável, os castigos terríveis, eternos, nada tinham de contrário à idéia que faziam de Deus, nada que lhes repugnasse a razão.
Implacáveis eles mesmos nas suas lutas, cruéis para os inimigos, piedosos para com os vencidos, Deus, que lhes era superior devia ser ainda mais terrível do que eles.

Para esses homens eram necessárias crenças religiosas adequadas à sua natureza ainda rude.
Uma religião inteiramente espiritual, feita de amor e caridade, não poderia harmonizar-se com a brutalidade dos seus costumes e das suas paixões.
Não acusemos pois Moisés por sua legislação draconiana, que era apenas suficiente para conter um povo indócil, nem de haver feito de Deus um ser vingativo.
Era o necessário para a época.
A suave doutrina de Jesus não poderia encontrar eco e se mostraria impotente.

4 — À medida que o Espírito se desenvolveu, o véu material foi-se dissipando aos poucos e os homens se tornaram mais aptos a compreender as questões espirituais.
Mas tudo isso teve de se fazer gradualmente.
Quando Jesus veio já pode anunciar um Deus clemente, falar do seu reino que não era deste mundo e dizer aos homens: amai-vos uns aos outros, fazei o bem aos que vos odeiam, enquanto os antigos diziam: olho por olho e dente por dente.

Mas quais eram os homens que viviam no tempo de Jesus? Seriam almas novas, criadas para ali se encarnarem? Se assim fosse, Deus teria criado no tempo de Jesus almas mais adiantadas que as do tempo de Moisés e nesse caso, em que se tornariam estas últimas? Teriam elas adormecido no embrutecimento pela eternidade? O simples bom senso repele esta suposição.
Não.
Eram as mesmas almas que após terem vivido sob o domínio da lei Mosaica, haviam adquirido através de muitas existências o desenvolvimento suficiente para compreenderem uma doutrina mais elevada, e que atualmente mostram-se ainda mais adiantadas, podendo receber um ensino mais completo.

5 — Apesar disso, o Cristo não pode revelar aos seus contemporâneos todos os mistérios do futuro.
Ele mesmo disse: tenho ainda muitas coisas para vos dizer, mas não as podereis compreender, é por isso que vos falo em parábolas.
Quanto aos problemas morais, aos deveres das relações humanas, Ele foi bastante preciso, porque, tocando a corda sensível dos interesses materiais podia fazer-se compreender.
Quanto aos outros pontos Ele se limitou a semear, sob forma alegórica, os germes que deveriam desenvolver-se mais tarde.

A doutrina das penas e das recompensas futuras estava neste caso.
Particularmente no tocante às penas Ele não podia romper abruptamente as concepções tradicionais.
Vinha revelar aos homens novos deveres: a caridade e o amor do próximo substituindo o ódio e a vingança; a abnegação em lugar do egoísmo.
Isto já era muito.
Ele não podia conscientemente atenuar o medo aos castigos reservados aos prevaricadores sem enfraquecer, ao mesmo tempo, o princípio do dever.

Jesus prometia o reino dos céus aos bons.
Esse reino estava portanto interditado aos maus.
Para onde iriam estes? Era necessária uma contraparte capaz de impressionar as inteligências demasiado materiais para compreenderem a vida espiritual.
Não se deve esquecer que Jesus se dirigia ao povo, à parte menos esclarecida da população, para a qual tinha de usar imagens de certa maneira palpáveis e não idéias abstratas.
Eis porque não podia entrar em detalhes supérfluos nesse terreno: bastava-lhe opor uma punição à recompensa sendo isto o suficiente naquela época.

6 — Se Jesus ameaçou os culpados com o fogo eterno, também os ameaçou de serem lançados na Geena.
Mas o que era a Geena? Um lugar nas cercanias de Jerusálem, o depósito de lixo da cidade.
Seria possível tomar-se isso ao pé da letra? Era apenas uma dessas imagens fortes de que se servia para impressionar as massas.
Acontecia o mesmo com o fogo eterno.
Se não fosse esse o seu pensamento, Ele estaria em contradição consigo mesmo ao exaltar a clemência e a misericórdia de Deus, porque a clemência e a inexorabilidade se negam reciprocamente.
Seria pois nos enganarmos estranhamente sobre o sentido das palavras de Jesus, vermos nela a sanção do dogma das penas eternas, quando todo o seu ensino proclama a bondade do criador.

Na oração dominical nos ensinou a dizer: Senhor, perdoai as nossas ofensas como perdoamos os nossos ofensores.
Se o culpado não pudesse esperar nenhum perdão, seria inútil pedi-lo.
Mas há condições para esse perdão? É ele uma graça, uma anulação pura e simples da pena em que se incorreu? Não.
A medida desse perdão está subordinada à maneira porque perdoamos, ou seja, se não perdoamos não seremos perdoados.
Fazendo do esquecimento das ofensas uma condição absoluta, Deus não podia exigir que o homem frágil fizesse o que Ele, todo-poderoso, não faria.
A oração dominical é uma negação da vingança eterna de Deus.

7 — Para os homens que só tinham uma noção confusa da espiritualidade da alma a idéia do fogo material não era chocante, tanto mais que ela se encontra na crença popular proveniente do inferno pagão e quase universalmente difundida.
A eternidade das penas nada tinha de repugnante para criaturas submetidas desde séculos à legislação do terrível Jeová.
No pensamento de Jesus o fogo eterno só podia ser uma figura.
Pouco lhe importava que essa figura fosse tomada ao pé da letra, desde que devia servir de freio.
Ele sabia muito bem que o tempo e o progresso se encarregariam de esclarecer o sentido alegórico, sobretudo quando, segundo a sua predição, o Espírito da Verdade viesse esclarecer todas as coisas aos homens.

A conseqüência essencial das penas irrevogáveis é a ineficácia do arrependimento.
Mas Jesus nunca disse que o arrependimento fosse inútil perante Deus.
Em todas as ocasiões, pelo contrário, apresentou um Deus clemente, misericordioso, pronto a receber o filho pródigo de volta para o lar paterno.
Só o mostrou inflexível para o pecador endurecido.
Mas assim mesmo, se tinha o castigo numa das mãos, tinha sempre o perdão na outra, pronto a dispensá-lo ao culpado, desde que esse voltasse sinceramente a Ele.
Não é verdadeira, pois, a imagem de um Deus impiedoso.
Devemos observar também que Jesus não pronunciou contra ninguém, mesmo contra os maiores culpados, a condenação irremissível.

8 — Todas as religiões primitivas, de acordo com a natureza dos povos tiveram deuses guerreiros que combatiam à frente dos exércitos.
O Jeová dos Hebreus lhes proporcionava todos os meios necessários para que exterminassem os seus inimigos, e os recompensava pela vitória ou os punia pela derrota.
Segundo a idéia que faziam de Deus, acreditavam honrá-lo ou apaziguá-lo com o sangue dos animais ou dos homens.
Vêm daí os sacrifícios sangrentos que tiveram papel tão considerável em todas as religiões antigas.

Os Judeus haviam abolido os sacrifícios humanos.
Os cristãos, apesar dos ensinos do Cristo, acreditavam por muito tempo honrar ao criador entregando ao fogo e às torturas milhares daqueles que chamavam de hereges.
Eram, sob outra forma, verdadeiros sacrifícios humanos, desde que o faziam para a maior glória de Deus e com a realização de cerimônias religiosas.
Ainda hoje continuam invocando o Deus dos Exércitos antes dos combates e o glorificam após a vitória, e isso frequentemente pelas causas mais injustas e mais anticristãs.

9 — Como o homem custa a se livrar de seus prejuízos, dos seus hábitos, das suas idéias primitivas!

Quarenta séculos nos separam de Moisés e nossa geração cristã ainda conserva os traços de antigas usanças bárbaras consagradas ou pelo menos aprovadas pela religião atual!

Foi necessária a pressão da opinião dos não-ortodoxos, dos que são olhados como heréticos, para se pôr fim às fogueiras e fazer compreender a verdadeira grandeza de Deus.
Mas, na falta das fogueiras as perseguições materiais e morais continuaram em vigor, de tal maneira a idéia de um Deus cruel está enraizada no homem.
Alimentado pelos sentimentos que lhes são inculcados na infância, poderia o homem estranhar que um Deus que lhe apresentaram honrado, por atos bárbaros condene às torturas eternas, vendo sem piedade o sofrimento dos condenados?

Foram os filósofos, os ímpios, segundo alguns, que se escandalizaram de ver o nome de Deus profanado por atos indignos dele.
Foram estes que o mostraram aos homens em toda a sua grandeza, despojando-o das paixões e da mesquinhez humana que lhe havia atribuído uma crença cega.
A religião ganhou com isso em dignidade aquilo que havia perdido em prestígio exterior, porque se há menos homens apegados a ela pela forma, é maior o número dos que são mais sinceramente religiosos, pelo coração e pelos sentimentos.

Mas ao lado desses, quantos foram levados, por ficarem apenas nas aparências, à negação da Providência! Por não haverem feito que as crenças religiosas acompanhassem o progresso da razão humana, os responsáveis por isso levaram uns ao deísmo, outros à incredulidade absoluta, outros ao panteísmo, o que vale dizer que o homem se fez Deus a si mesmo na falta de outro mais perfeito.

Argumentos a Favor das Penas Eternas

10 — Voltemos ao dogma da eternidade das penas.
O principal argumento que se invoca em seu favor é o seguinte.

Admite-se entre os homens que a gravidade da ofensa está na razão da qualidade do ofendido.
Aquela que se comete contra um soberano é considerada mais grave do que a cometida contra um simples cidadão e punida com maior severidade.
Ora, Deus é mais que um soberano, pois é infinito e por isso mesmo a ofensa a ele também se torna infinita, merecendo um castigo da mesma natureza, ou seja: eterno.

Refutação — Toda a refutação é um raciocínio que deve ter o seu ponto de partida, uma base em que se apoiar, premissas, numa palavra.
Encontramos essas premissas nos próprios atributos de Deus.

Deus é único, eterno, imutável, imaterial, todo-poderoso, soberanamente justo e bom, infinito em todas as suas perfeições.

Não se pode conceber Deus sem o infinito das suas perfeições, pois sem isso ele não seria Deus, desde que poderíamos conceber um ser que possuísse o que lhe falta.
Para que ele seja o único acima de todas os seres é necessário que nenhum o possa superar ou igualar seja no que for.
Portanto, é necessário que ele seja infinito em todos os sentidos.
Os atributos de Deus, sendo infinitos, não podem aumentar nem diminuir.
Sem isso, eles não seriam infinitos e Deus não seria perfeito.
Se tirássemos a Deus a mínima parcela de um só de seus atributos, não mais teríamos Deus, pois seria possível a existência de um ser mais perfeito.

O infinito de uma qualidade exclue a possibilidade de existir uma qualidade contrária que a anulasse ou diminuísse.
Um ser infinitamente bom não pode ter a menor parcela de maldade, e um ser infinitamente mau não pode ter a menor parcela de bondade.
Isso da mesma maneira que um objeto não poderia ser absolutamente negro com a mais leve nuança de branco, nem absolutamente branco com a mínima mancha negra.

Colocado esse ponto, podemos opor ao argumento acima o seguinte raciocínio:

11 — Somente um ser infinito pode criar o infinito.
O homem, limitado em suas virtudes, nos seus conhecimentos, nos seus poderes, nas suas aptidões, na sua própria existência terrena, só pode produzir coisas limitadas.

Se o homem pudesse ser infinito no mal que pratica, também o poderia ser no bem que faz, e ele seria igual a Deus.
Mas, se o homem fosse infinito no tocante ao bem, não faria nenhum mal, porque o bem absoluto é a exclusão de todo o mal.

Admitindo-se que uma ofensa temporária praticada contra a divindade pudesse ser infinita, Deus, vingando-a por um castigo infinito seria infinitamente vingativo.
E se ele o for, não pode ser infinitamente bom e misericordioso, pois um dos seus atributos é a limitação do outro.
Se ele não for infinitamente bom não é perfeito, e se não for perfeito não é Deus.

Se Deus for inexorável para o culpado arrependido, não é misericordioso, e se não é misericordioso, não é infinitamente bom.

Porque daria Deus ao homem a lei do perdão, se ele mesmo não devesse perdoar? Disso resultaria que o homem que perdoa os seus inimigos, retribuindo-lhes o mal com o bem, seria melhor que Deus que permanece surdo ao arrependimento do seu ofensor e lhe recusa, pela eternidade, a mais leve atenuação da pena.

Deus, que está em toda a parte e tudo vê, tem de ver as torturas dos condenados.
Se ele for insensível aos seus clamores pela eternidade, será eternamente impiedoso, e se for impiedoso não é infinitamente bom.

12 — A isto, respondem que o pecador que se arrepende antes de morrer obtém a misericórdia de Deus e que o maior culpado pode se beneficiar com a sua graça.

Não pode haver dúvida quanto a isto.
Concebe-se que Deus somente perdoe aos arrependidos e seja inflexível para os espíritos endurecidos.
Mas se ele se mostra cheio de misericórdia para a alma que se arrepende antes de deixar o corpo, porque não faria o mesmo para aquela que se arrepende depois da morte? Qual a razão do arrependimento só ser eficaz durante a vida, representa apenas um instante e não o ser durante a eternidade? Se a bondade e a misericórdia de Deus ficam circunscritas a um determinado tempo, não são infinitas e Deus não é infinitamente bom.

13 — Deus é soberanamente justo.
A soberana justiça não é a mais inexorável nem a que deixa impunes todas as faltas, mas a que considera da maneira mais rigorosa o bem e o mal, recompensando um e punindo o outro com perfeita equidade, sem jamais se enganar.

Se por uma falta passageira que resulta quase sempre da natureza imperfeita do homem, e muitas vezes decorre do meio em que ele se encontra, a alma pode ser punida eternamente, sem esperanças de abrandamento e nem de perdão, não existe nenhuma proporção entre a falta e a punição.
Portanto, não há justiça.

Se o culpado se volta para Deus, arrependendo-se e pedindo para reparar o mal cometido, isso equivale a um retorno ao bem, aos bons sentimentos.
Se o castigo for irrevogável, esse retorno ao bem não produz efeito, desde que Deus não leva em conta o bem e não pratica a justiça.
Entre os homens, o condenado que se emenda vê a sua pena comutada e às vezes perdoada.
Haveria, pois, na justiça humana mais equidade que na justiça Divina!

Se a condenação é irrevogável, o arrependimento é inútil.
Nada podendo esperar do seu retorno ao bem, o culpado persiste no mal, de maneira que Deus não somente o condena a sofrer eternamente mas também a permanecer no mal por toda a eternidade.
Não há nisso nem justiça, nem bondade.

14 — Sendo infinito em todas as coisas, Deus deve conhecer tudo no passado e no futuro.
Deve saber, no momento da criação de uma alma, se ela vai falir de maneira grave para ser condenada eternamente.
Se não o sabe, seu saber não é infinito e nesse caso Ele não é Deus.
Se o sabe, cria voluntariamente um ser condenado, desde à sua formação, às torturas sem fim, e nesse caso não é bom.

Se Deus, tocado pelo arrependimento de um condenado, pode estender a ele a sua misericórdia e o retirar do inferno, não existe penas eternas e o julgamento feito pelos homens está revogado.

15 — A doutrina das penas eternas, aceita de maneira absoluta, leva-nos forçosamente à negação ou a diminuição, de alguns atributos de Deus.
Ela é, por conseguinte, inconciliável com a perfeição infinita, pelo que chegamos à esta conclusão:

Se Deus é perfeito, a condenação eterna não existe; se ela existe, Deus não é perfeito.

16 — Invoca-se ainda em favor do dogma da eternidade das penas o seguinte argumento:

A recompensa concedida aos bons sendo eterna, deve ter como contraparte uma punição eterna.
É justo proporcionar a punição à recompensa.

Refutação — Deus teria criado a alma com o fim de fazê-Ia feliz ou infeliz.
É evidente que a felicidade das criaturas deve ser o objetivo de sua criação, pois de outra maneira Deus não seria bom.
Ela atinge a felicidade pelo próprio mérito.
Conquistado o mérito, ela não pode perder o seu fruto, porque então degeneraria.
A eternidade da felicidade é pois uma consequência da sua natureza imortal.

Mas antes de chegar à perfeição, ela terá lutas a sustentar, combates a travar com as más paixões.
Não a tendo criado perfeita, mas capaz de se aperfeiçoar, a fim de que tenha o mérito de suas obras, ela pode falir.
Suas quedas decorrem de sua fraqueza natural.
Se ela tivesse de ser condenada eternamente por uma queda, poderíamos perguntar porque Deus não a criou mais forte.

A punição sofrida pela alma é uma advertência de que ela fez o mal.
Deve ter como resultado reconduzi-la ao bom caminho.
Mas se a pena fosse irremissível, seu desejo de se corrigir seria inútil.
Assim, o fim providencial da criação não poderia ser atingido, porque haveria seres predestinados à felicidade e outros à desgraça.
Se uma alma culpada se arrepende, pode tornar-se boa; podendo tornar-se boa, pode aspirar à felicidade.
Deus seria justo se lhe recusasse esses meios?

Sendo o bem o objetivo final da criação, a felicidade, que é o seu prêmio, deve ser eterna.
Ao mesmo tempo, o castigo que é um meio de levar ao bem deve ser temporário.
A mais vulgar noção de justiça, mesmo entre os homens, diz que não se pode castigar perpetuamente aquele que tem o desejo do bem e se dispõe a praticá-lo.

17 — Um último argumento em favor da eternidade das penas é o seguinte:

O temor de um castigo eterno é o freio.
Se o eliminarmos, nada mais tendo a temer, o homem se entregará a todos os desregramentos.

Refutação — Esse raciocínio seria justo se ao eliminarmos a eternidade das penas suprimíssemos toda e qualquer sanção penal.
A situação feliz ou infeliz na vida futura decorre de uma rigorosa consequência da justiça de Deus, enquanto uma identidade de situação entre o homem bom e o perverso seria a negação dessa justiça.
Pelo fato de não ser eterno, o castigo não tem de ser menos penoso.
Ele se torna tanto mais temível, quanto mais se pode aceitá-lo, e tanto mais aceitável, quanto mais racional.
Uma penalidade em que não se pode crer não é um freio, e a eternidade das penas está nesse caso.

A crença nas penas eternas, como já dissemos, teve a sua utilidade e a sua razão de ser em certa época.
Hoje, não somente ela deixou de assustar, como acabou por semear a incredulidade.
Antes de colocá-la como uma necessidade, seria necessário demonstrar a sua realidade.
Conviria, sobretudo que se pudesse ver a sua eficácia no exemplo daqueles que a preconizam e se esforçam para a demonstrar.
Infelizmente, entre eles, são bem poucos os que provam pelos seus atos que realmente estão atemorizados.
Se essa crença é impotente para reprimir o mal entre aqueles que dizem acreditar nela, que domínio poderia ter sobre os que não acreditam?

Impossibilidade Material das Penas Eternas

18 — Até aqui, o dogma das penas eternas só foi contraditado pelo raciocínio.
Vamos agora demonstrar que ele está em contradição com os fatos positivos que temos diante dos olhos e que provam a sua impossibilidade.

De acordo com esse dogma, o destino da alma após a morte é fixado de maneira irrevogável.
Fica assim definitivamente barrado o seu progresso.
Ora, a alma progride ou não? Eis toda a questão.
Se ela progride a eternidade das penas é inadmissível.

Podemos duvidar desse progresso, quando vemos a imensa variedade de aptidões morais e intelectuais existentes na Terra, desde o selvagem até o homem civilizado? Quando se vêem as diferenças que um mesmo povo apresenta de um século para outro? Se admitirmos que não são mais as mesmas almas, teremos de aceitar que Deus cria as almas em todos os graus de desenvolvimento, de acordo com os tempos e os lugares, favorecendo umas, enquanto relega outras à uma inferioridade perpétua.
Isso é incompatível com a justiça, que deve ser a mesma para todas as criaturas.

19 — É incontestável que a alma, intelectual e moralmente não desenvolvida, como a dos povos bárbaros, não pode dispôr das mesmas condições de felicidade, das mesmas aptidões para gozar dos esplendores do infinito, que tem aquela cujas faculdades já se encontram amplamente desenvolvidas.
Se essas almas, portanto, não progredirem, não podem, mesmo nas condições mais favoráveis, gozar pela eternidade senão de uma felicidade muito reduzida.
Chega-se assim forçosamente, de acordo com uma rigorosa justiça, à conclusão de que as almas mais adiantadas são as mesmas que antes se apresentavam como atrasadas e depois progrediram.
Aqui tocamos na grave questão da pluralidade das existências, como único meio racional de se resolver a dificuldade.
Não obstante, a deixaremos de lado para só considerar a alma numa única existência.

20 — Consideremos, como tantos que existem, um jovem de vinte anos, ignorante, entregue aos instintos inferiores negando Deus e sua alma, desordeiro, cometendo toda espécie de maldades.
Colocado, entretanto, num meio favorável, trabalha e se instrue, corrige-se pouco a pouco e por fim se transforma numa criatura piedosa.
Não é esse um exemplo palpável do progresso da alma durante a vida, e todos os dias não vemos casos semelhantes?

Esse homem morre em santidade numa idade avançada e certamente a sua salvação está assegurada.
Mas o que teria sido dele, se um acidente o tivesse levado à morte quarenta ou cinqüenta anos antes? Estaria dentro de todas as condições para ser um condenado, e uma vez condenado, estaria impedido de realizar qualquer progresso.

Eis o caso de um homem que se salvou por ter vivido bastante e que, segundo a doutrina das penas eternas, jamais se teria salvado se tivesse vivido menos, o que poderia acontecer por um acidente qualquer.
Mas desde que a sua alma pode progredir num determinado tempo, porque não progrediria nesse mesmo tempo após a morte, se uma causa independente da sua vontade a tivesse impedido de fazê-lo em vida? Porque Deus haveria então de recusar-lhe os meios? O arrependimento, embora tardio, não é menos efetivo do que se viesse em tempo.
Mas se desde o instante da morte uma condenação irremissível o atingiu, seu arrependimento não tem mais valor para a eternidade e sua capacidade de progredir ficou para sempre anulada.

21 — O dogma da eternidade das penas é pois inconciliável com o progresso da alma, pois lhe opõe um obstáculo insuperável.
Esses dois princípios se anulam forçosamente um pelo outro.
Se um existe, o outro não pode existir.
Qual dos dois realmente existe? A lei do progresso é evidente, não é uma teoria, mas um fato constatado pelas experiências.
É uma lei natural, lei divina, imprescritível.
Assim, desde que ela existe e não pode se conciliar com a outra, é que a outra não existe.
Se o dogma da eternidade das penas fosse verdadeiro, Santo Agostinho, São Paulo e muitos outros jamais teriam visto o céu se houvessem morrido antes do progresso que os levou à conversão.

A esta afirmação respondem que a conversão desses santos não resultou de nenhum progresso da alma, mas da graça que lhes foi concedida e pela qual se sentiram tocados.

Mas isto é jogar com palavras.
Se eles praticaram o mal e mais tarde se voltaram para o bem é que se tornaram melhores.
Conseqüentemente: progrediram.
Deus lhes teria concedido então, por um favor especial, a graça de se corrigirem? Porque a eles e não a outros? É sempre a doutrina dos privilégios, incompatível com a justiça de Deus e seu amor sem distinção para com todas as criaturas.

Segundo a doutrina espírita, segundo as próprias palavras do Evangelho, dentro da lógica e da mais rigorosa justiça, o homem é o que as suas próprias obras o fazem, durante esta vida e após a morte.
Nada ele deve a qualquer favoritismo, pois Deus o recompensa de acordo com os seus esforços e o pune pela sua negligência, por tanto tempo quanto durar a negligência.

A Doutrina das Penas Eternas Passou do Tempo

22 — A crença na eternidade das penas materiais permaneceu como um temor necessário até que os homens pudessem compreender o poder da moral.
Aconteceu como com as crianças que podem ser contidas durante algum tempo pela ameaça de certos seres fantásticos que lhes causam pavor, mas chega o momento em que a razão da criança recusa por si mesma essas estórias, e então seria absurdo pretender governá-las pelos mesmos meios.
Se continuarem a dizer que essas fábulas são verdadeiras e devem ser tomadas ao pé da letra, elas perderão a confiança nas pessoas.

É o que acontece atualmente com a humanidade.
Ela saiu da infância e se libertou dessas rédeas artificiais.
O homem não é mais esse instrumento passivo que se curva à força material, nem a criatura crédula que tudo aceitava de olhos fechados.

23 — A crença é um ato de entendimento e por isso não pode ser imposta.
Se, durante um certo período da evolução da humanidade, o dogma da eternidade das penas foi inofensivo, salutar mesmo, chegou agora o momento em que ele se torna perigoso.
Com efeito, desde o momento que lhe imponham esse dogma como verdade absoluta, quando a razão o repele, necessariamente acontecerá uma destas coisas: ou o homem que deseja crer procura uma crença mais racional e se afasta da que lhe querem impor, ou deixa inteiramente de crer.
É evidente, para quem quer estudar friamente a questão, que nos nossos dias a eternidade das penas produziu maior número de materialistas e ateus do que todos os filósofos.

As idéias seguem um curso necessariamente progressivo e não se pode governar os homens senão seguindo esse curso.
Querer detê-los ou fazê-los retroceder, ou simplesmente parar onde se encontram, quando ele está avançando, seria perdê-los.
Seguir ou não seguir esse movimento é uma questão de vida ou de morte, tanto para as religiões como para os governos.
É isso um bem? Ou é um mal? Certamente é um mal aos olhos dos que, vivendo no passado, percebem que esse passado lhes escapa.
Para os que vêm o futuro, é o cumprimento da lei do progresso que é uma lei de Deus.
E contra as leis de Deus é inútil qualquer resistência: lutar contra a sua vontade é querer despedaçar-se.

Porque, pois, querer a toda força sustentar uma crença que cai em decrepitude e que na verdade produz mais mal do que bem à própria religião? Infelizmente, é triste dizer, uma questão material domina neste ponto o problema religioso.
Essa crença tem sido largamente explorada, graças à idéia de que as portas do céu podem ser abertas com dinheiro, livrando-nos do inferno.
As somas que ela tem produzido e que ainda produz são incalculáveis: é o imposto cobrado sobre o medo da eternidade.
Sendo facultativo, o produto desse imposto é proporcional ao domínio da crença .
Se esta não mais existir, a arrecadação desaparece.
A criança dá o seu doce de boa vontade a quem lhe promete que vai espantar o lobisomem, mas quando a criança não acredita mais no lobisomem, prefere comer o doce.

24 — A nova revelação, fornecendo idéias mais aceitáveis sobre a vida futura e demonstrando que a salvação pode ser alcançada através das próprias obras, deve enfrentar uma oposição tanto mais forte, quanto ela vem estancar a mais importante fonte de arrecadação.
É o que sempre acontece quando uma descoberta ou uma invenção vem modificar as situações.
Os que vivem dos antigos costumes sempre os defendem, procurando desacreditar as novidades, por mais vantajosas que sejam.

Acreditais, por exemplo, que a arte de imprimir, não obstante os benefícios que devia trazer à humanidade, pudesse ser aclamada pela numerosa classe dos copistas? Não, certamente.
Eles deviam maldizê-la.
Assim também aconteceu com as máquinas, com as estradas de ferro e centenas de outras coisas.

Aos olhos dos incrédulos, o dogma da eternidade das penas é uma simples futilidade que lhes provoca o riso.
Aos olhos do filósofo, a questão se torna grave no seu aspecto social pelos abusos a que tem servido, de motivo.
O homem verdadeiramente religioso considera que a dignidade da religião depende da destruição desses abusos e conseqüentemente das suas causas.

Ezequiel Contra a Eternidade das Penas e o Pecado Original

25 — Aos que pretendem encontrar na Bíblia a justificação da eternidade das penas podemos opor os textos contrários, que não permitem nenhuma dúvida a respeito.
As seguintes palavras de Ezequiel são a mais decisiva negação, não somente das penas irremissíveis, mas também da possibilidade de recair sobre toda a sua descendência a falta cometida pelo pai do gênero humano:

1) Veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: 2) Que tendes vós, vós que acerca da terra de Israel proferiste este provérbio, dizendo: Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos é que se embotaram? 3) Tão certo como eu vivo, diz o Senhor Deus, jamais direis este provérbio em Israel.
4) Eis que todas as almas são minhas; como a alma do pai, também a alma do filho é minha; a alma que pecar, essa morrerá.
5) Sendo, pois, o homem justo e fazendo juízo e justiça; 7) não oprimindo a ninguém, tornando ao devedor a coisa penhorada, não roubando, dando o seu pão ao faminto e cobrindo ao nu com vestes; 8) não dando seu dinheiro à usura, não recebendo juros, desviando a sua mão da injustiça e fazendo verdadeiro juízo entre homem e homem; 9) andando nos meus estatutos, guardando os meus juízos e procedendo retamente o tal justo certamente viverá, diz o Senhor Deus.

10) Se ele gerar um filho ladrão, derramador de sangue, que fizer a seu irmão qualquer destas coisas.
13) esse filho morrerá, por todas estas abominações que ele fez e o seu sangue será sobre ele.

14) Eis que, se ele gerar um filho que veja todos os pecados que seu pai fez e, vendo-os, não cometer coisas semelhantes, 17) não morrerá pela iniqüidade de seu pai, mas certamente viverá.
18) Quanto a seu pai, porque praticou extorsão, roubou os bens do próximo e fez o que não era bom no meio do seu povo, eis que morrerá por causa de sua iniqüidade.

19) Mas direis: Por que não leva o filho a iniqüidade do pai? Porque o filho fez o que era reto e justo e guardou todos os meus estatutos e os praticou, por isso certamente viverá.

20) A alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniqüidade do pai, nem o pai a iniqüidade do filho; a justiça do justo ficará sobre ele e a perversidade do perverso cairá sobre este.

21) Mas se o perverso se converter de todos os pecados que cometeu e guardar todos os meus estatutos, e fizer o que é reto e justo, certamente viverá, não será morto.
22) De todas as transgressões que cometeu não haverá lembrança contra ele; pela justiça que praticou, viverá.

23) Acaso tenho eu prazer na morte do perverso? diz o Senhor Deus.
Não, desejo eu antes que ele se converta do seu caminho e viva.
(Ezequiel, cap, XVIII, vs.
1 a 23.
)

11) Tão certo como eu vivo, diz o Senhor Deus, não tenho prazer na morte do perverso, mas em que o perverso se converta do seu caminho e viva.
(Ezequiel, cap.
XXXIII, v.
11)(24)

(24) Nota-se a falta do versículo 6 do cap.
XVIII de Ezequiel.
A omissão foi proposital.
Kardec deixou de lado esse versículo porque ele se refere a ordenações judaicas da lei de pureza (superadas pelo Evangelho) como se pode ver conferindo-se o texto com a Bíblia.
Como se pode alegar que a omissão oculta segunda intenção o que se já tem feito, damos aqui esse versículo: Não comendo carne sacrificada nos altos, nem levantando os olhos para os ídolos da casa de Israel, nem contaminando a mulher do seu próximo, nem se chegando à mulher na sua menstruação.
Como se vê, esse versículo quebra a harmonia do texto em sua aplicação atual.
Os vs.
12, 15 e 16 foram também suprimidos porque repetem aquelas ordenações.

Tanto no original francês, como em todas as traduções correntes entre nós ocorreu também um erro de citação, que corrigimos aqui.
O versículo 23 do cap.
XVIII foi mencionado como pertencente ao cap.
XXVIII.
Um pequeno engano, certamente gráfico, ainda hoje mantido nas próprias edições francesas e belgas.
(N.
do T.
)

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