RESGATE INTERROMPIDO – Casamento 5/5 (1)

Acompanhando o Assistente, passamos a cooperar na rearmonização da pequena família domiciliada em subúrbio de populosa capital.
Ildeu, o chefe da casa, homem que mal atingira a madureza física, pouco além dos trinta e cinco de idade, encontrara em Marcela a esposa abnegada e mãe de seus três filhinhos, Roberto, Sônia e Márcia, entretanto, seduzidos pelos encantos da jovem Mara, moça leviana e inconsequente, tudo fazia para que a esposa o abandonasse.
Marcela, porém, educada na escola do Dever, dedicava-se ao lar e tudo fazia para não deixar perceber a própria dor.
Pelos gestos rudes e pela deplorável conduta em casa, não desconhecia a modificação do pai de seus filhos, e, recebendo cartas insultuosas da rival que lhe disputava o companheiro, sabia chorar em silencio, confiando-as ao fogo para que não caíssem sob o olhar do esposo.
Doía-nos, cada noite, vê-la em prece, ao lado das criancinhas.
Roberto, o primogênito, com nove anos de idade acariciava lhe a cabeça, adivinhando lhe os soluços imobilizados na garganta, e as duas pequeninas, na inconsciência infantil, repetiam maquinalmente as orações ditadas pela nobre senhora, oferecendo-as a Jesus, em favor do “papai”.
Em atormentada vigília até noite alta, agoniava-se lhe o espírito, observando Ildeu, estroina, alcançando o lar, tresandando a licores alcoólicos e exibindo os sinais de aventuras inconfessáveis.
Se erguia a voz, lembrando alguma necessidade dos meninos, retorquia ele, irritado: – Vida infame! Sempre você a recriminar-me, a aborrecer-me, a perseguir-me com censuras e petitórios!… Se quiser dinheiro, trabalhe. Se eu soubesse que o casamento seria isso, teria preferido estourar os miolos a assinar um contrato que me escraviza a existência inteira!…
E gritando, intemperante, mostrava-nos a tela das suas recordações, em que Mara, a jovem sedutora, lhe surgia à mente, como sendo a mulher ideal. Cotejava-a com a esmaecida figura da esposa que as dificuldades acabrunhavam e, governado pela imagem da outra, entregava-se a chocantes excitações, ansiando fugir do lar.
Marcela, em pranto, suplicava lhe tolerância e serenidade, acentuando que não desdenhava o serviço.
Despendia o tempo de que dispunha na cooperação mal remunerada, em favor de lavanderia modesta, contudo, os afazeres domésticos não lhe permitiam fazer mais.
– Hipócrita! – berrava o marido que a cólera transtornava – e eu? que pretende você de mim? posso, acaso, fazer mais? sou um homem dependurado em lojas e armazéns… Devo a todos!… por sua causa, simplesmente em razão do seu desperdício… Não sei até quando poderei atura-la. Não será mais aconselhável regresse você à terra que teve a infelicidade de vê-la nascer? Seus pais estão vivos…
A pobre criatura em lágrimas emudecia, mas, sendo a voz dele estentórica, quase sempre o pequeno Roberto acordava e acorria em socorro da mãezinha, enlaçando-a, estremunhado.
Ildeu avançava sobre o miúdo interventor a sopapos, clamando com insofreável revolta: – Saia daqui! Saia daqui!…
E qual se o petiz lhe não fora filho, mas adversário confesso, acrescentava, cerrando os punhos: – Tenho gana de matá-lo!… matá-lo!… Todas as noites, esta mesma pantomima. Bandido! Palhaço!… E o menino, agarrado ao colo materno, sofria pancadas até recolher-se, de novo, ao leito, em pranto convulsivo.
Entretanto, se as filhinhas choramingassem, eis que o genitor se desfazia em ternura, ainda mesmo quando plenamente embriagado, proferindo, bondoso: – Minhas filhas!… minhas pobres filhas!… que será de vocês no futuro? é por vocês que ainda me encontro aqui, tolerando a cruz desta casa!…
E, não raro, ele próprio ia reacomodá-las no berço.
Silas e nós entrávamos em ação, a benefício de Marcela e dos filhinhos.
Do atormentado lar, ameaçado de completa destruição, demandávamos outros setores de serviço, sem que o Assistente encontrasse oportunidade de administrar-nos esclarecimentos mais amplos.
Todavia, quase que diariamente, à noite, ali aplicávamos alguns minutos em tarefas que nos falavam aos refolhos do coração.
Contudo, apesar de nosso esforço, o chefe da família mostrava-se, cada dia, mais indiferente e distante.
Enfadado e irritadiço, não concedia à esposa nem mesmo a gentileza de leve saudação. Fascinado pela outra, passara a odiá-la. Pretendia desobrigar-se do compromisso assumido e trilhar nova senda…
No entanto, como atender ao problema do amor às pequeninas? – “Sinceramente – pensava de si para consigo – não amava a Roberto, o filho cujo olhar o acusava sem palavras, lançando lhe em rosto o censurável procedimento, mas adorava Sônia e Márcia, com desvelada ternura… Como ausentar-se delas no desquite provável? Decerto, a companheira teria assegurados, perante a lei, os direitos de mãe… Senhora de nobre conduta, Marcela contaria com o favor da Justiça…” Refletia, refletia…
Ainda assim, não renunciava o carinho de Mara, cuja dominação lhe empolgava o sentimento enfermiço.
Fosse onde fosse, registrava lhe a influência sutil, a desfibrar lhe o caráter e a dobrar lhe a cerviz de homem que, até encontrá-la, fora honrado e feliz.
Por vezes, tentava subtrair-se lhe ao julgo, mas debalde.
Marcela apresentava o semblante da disciplina que lhe competia observar e da obrigação que lhe cabia cumprir, quando Mara, de olhos em fogo, lhe acenava a liberdade e ao prazer.
Foi assim que lhe nasceu no cérebro doentio uma idéia sinistra: assassinar a esposa, escondendo o próprio crime, para que a morte dela aos olhos do mundo passasse como sendo autêntico suicídio.
Para isso alteraria o roteiro doméstico.
Procuraria abolir o regime de incompreensão sistemática, daria tréguas à irritação que o senhoreava e fingiria ternura para ganhar confiança… E, depois de alguns dias, quando Marcela dormisse, despreocupada, desfechar-lhe-ia uma bala no coração, despistando a própria polícia.
Acompanhamos lhe a evolução do tresloucado plano, porquanto é sempre fácil penetrar o domínio das formas-pensamentos, vagarosamente construídas pelas criaturas que as edificam, apaixonadas e persistentes, em torno dos próprios passos.
Na aparente calmaria que sustentava, Ildeu, embora sorrisse, exteriorizava ao nosso olhar o inconfessável projeto, armando mentalmente o quadro criminoso, detalhe por detalhe.
Para defender Marcela, porém, cuja existência era amparada pela Mansão que representávamos, o Assistente reforçou na casa o serviço de vigilância.
Dois companheiros nossos, zelosos e abnegados, alternativamente ali passaram a velar, dia e noite, de modo a entravar o pavoroso delito. Achávamos nos, certa feita, em atividade assistencial ao pé de alguns doentes, quando o irmão em serviço veio até nós, comunicando, inquieto, a precipitação dos acontecimentos.
De alma aturdida pela influência de homicidas desencarnados que lhe haviam percebido os pensamentos expressos, intentaria Ildeu aniquilar a companheira naquela mesma noite.
Silas não vacilou.
Demandamos, de imediato, a casa singela em que se reunia a equipe doméstica atormentada.
Dispondo da extensa autoridade de que se achava investido, o nosso orientador, empregando o concurso de entidades amigas, em rotina de trabalho nas vizinhanças, inicialmente baniu os alcoólatras e delinquentes desencarnados que ali se acolhiam.
Apesar da providência, o plano infernal na cabeça de nosso pobre amigo evidenciava-se integralmente maduro.
A madrugada ia alta.
Com o coração precípite, relanceando o olhar medroso pelas paredes nuas do gabinete em que examinava o pente de uma pistola, qual se nos adivinhasse a presença, o chefe da família revelava-se disposto à consumação do ato execrável.
Revestindo lhe todo o cérebro, surgia a cena do assassínio, calculadamente prevista, movimentando-se em surpreendente sucessão de imagens…
Oh! se as criaturas encarnadas tivessem consciência de como se lhes exteriorizam as ideias, certamente saberiam guardar-se contra o império do crime! O irrefletido pai pensava demandar o aposento dos filhos, para trancá-los à chave, de maneira a evitar lhes o testemunho, quando Silas, de improviso avançou para o leito das meninas e, utilizando os recursos magnéticos de que dispunha, chamou a pequena Márcia, em corpo espiritual, a rápida contemplação dos pensamentos paternos.
A criança, em comunhão com o quadro terrível, experimentou tremendo choque e retornou, de pronto, ao veículo físico, brandando, desvairada, como quem se furtasse ao domínio de asfixiante pesadelo: – Papai!… Paizinho! Não mate! Não mate!…
Ildeu, a esse tempo, já se encontrava à porta, sustendo a arma na destra e tentando manobrar a fechadura com a mão livre.
Os gritos da menina ecoaram em toda a casa, provocando alarido.
Marcela, num átimo, pôs-se de pé, surpreendendo o marido ao pé da filha, e, junto deles, o revólver augurando maus presságios.
A mulher bondosa e incapaz de suspeitar das intenções dele, recolheu cautelosamente a arma e, crendo que o esposo pretendera suicidar-se, implorou em pranto: – Oh! Ildeu, não te mates! Jesus é testemunha de que tenho cumprido retamente todos os meus deveres… Não quero o remorso de haver cooperado para semelhante desatino, que te lançaria entre os réprobos das leis de Deus!… Procede como quiseres, mas não te despenhes no suicídio. Se é de tua vontade, monta nova casa em que vivas com a mulher que te faça feliz… Consagrarei minha existência aos nossos filhos. Trabalharei, conquistando o pão de nossa casa com o suor de meu rosto…
entretanto, suplico, não te mates!…
A generosa atitude daquela mulher sensibilizava-nos até as lágrimas.
O próprio Ildeu, não obstante o sentimento empedernido, sentia-se tocado de piedade, agradecendo, no íntimo, a versão que a esposa, digna e abnegada, oferecia aos acontecimentos, cuja direção não conseguira prever. E, encontrando a escapatória que, de há muito, buscava, longe de ouvir os brados da consciência, que o concitavam à vigilância, exclamou, à feição de vítima: – Realmente, não posso mais… Agora, para mim, só restam dois caminhos, suicídio ou desquite…
Marcela, com o auxílio do Assistente descarregou o revólver, reconduziu as crianças ao sono e deitou-se, atribulada. Nos olhos tristes, lágrimas borbulhavam na sombra, enquanto orava, súplice, na torturada quietude do seu martírio silenciosa: – “Ó meu Deus, compadece-te de mim, pobre mulher desventurada!… que fazer, sozinha na luta, com três crianças necessitadas?…” Todavia, antes que a dor pungente se lhe metamorfoseasse em desânimo destruidor, Silas aplicou lhe passes balsamizantes, hipnotizando-a, com o que a flagelada senhora, em desdobramento, se colocou, inquieta diante de nós.
Tomando-nos à conta de mensageiros do Céu, na cristalização dos hábitos em que comumente mergulham as almas encarnadas, ajoelhou-se e rogou amparo.
Silas, porém, soergueu-a, bondoso, e explicou: – Marcela somos apenas teus irmãos… Reanima-te! Não te encontras sozinha. Deus, Nosso Pai, jamais nos abandona … Concede, sim, liberdade ao teu esposo, embora saibamos que o dever é uma benção divina da qual pagaremos caro a deserção… Que Ildeu rompa os laços respeitáveis dos seus compromissos, se é que julga seja essa a única maneira de adquirir a experiência que deve conquistar… Haja porém o que houver, ajuda-o com tolerância e compreensão. Não lhe queiras mal algum. Antes, roga a Jesus o abençoe e ampare, onde esteja, porque o remorso e o arrependimento, a saudade e a dor para os que fogem das obrigações que o Senhor lhes confia convertem-se em fardos difíceis de carregar. Sabemos que a ele te ligaste em sagrada aliança na empresa redentora do pretérito próximo… Ainda assim, se ele esmorece, à frente da luta, em pleno exercício da faculdade de escolher, não será justo lhe violentes o livre arbítrio, impondo lhe atitudes que a ele compete cultivar. Ildeu ausenta-se agora dos contratos que abraçou, a benefício de si mesmo, e interrompe o resgate das contas que lhe são próprias… Voltará, porém, mais tarde nos débitos que olvida, talvez mais onerado perante a Lei… Não te lamentes, contudo, e segue adiante. Sejam quais forem as lutas que te descerem ao coração, resigna-te e não temas. Faze dos filhinhos o apoio firme na caminhada. Todo sacrifício edificante no mundo expressa enriquecimento de nossas almas na Vida Eterna… Renuncia, pois, ao homem querido, respeitando lhe os caprichos do coração, e aguarda o futuro com esperança.
E porque Marcela chorasse, receando o porvir, em face das contingências materiais, Silas afagou lhe a cabeça e asseverou, prestimoso: – Para mãos dignas jamais faltará trabalho digno. Contemos com a proteção do Senhor e marchemos com desassombro. Enxuga o pranto e ergue-te em espírito à Fonte do Sumo Bem!…
Nesse ínterim, parentes desencarnados da jovem senhora assomaram carinhosamente ao recinto, estendendo lhe as mãos…
E nosso orientador confiou lhes Marcela, chorosa, rogando lhes ajuda para que a víssemos restaurada.
Retiramo-nos, em seguida.
Foi então que nossas perguntas explodiram, insopitáveis: – Por que Marcela, meiga e honesta, era odiada pelo esposo, assim tanto? Por que a preferência de Ildeu pelas filhinhas, com tanto desdém pelo primogênito? E a separação em perspectiva? Seria justo procurar o nosso mentor fortalecer aquela mãezinha desventurada para o desquite, ao invés de incentivá-la à recuperação do amor e do devotamento da companheira? O Assistente sorriu com manifesto desencanto e obtemperou: – Há nas anotações do Apóstolo Mateus (8) certa passagem, na qual afirma Jesus que o divórcio na Terra é permitido a nós outros pela dureza dos nossos corações. Aqui, a medida deve ser facultada à maneira de medicação violenta em casos desesperadores de desarmonia orgânica. Na febre alta ou no tumor maligno, por exemplo, a intervenção exige métodos drásticos, afim que a crise de sofrimento não culmine com a loucura ou com a morte extemporânea. Nos problemas matrimoniais, agravados pela defecção de um dos cônjuges ou mesmo pela deserção de ambos do dever a cumprir, o divórcio é compreensível como providência contra o crime, seja ele o assassínio ou suicídio… Entretanto, assim como o choque operatório para o tumor e quinina para certas febres são recursos de emergência, sem capacidade de liquidar as causas profundas da enfermidade, as quais prosseguem reclamando tratamento longo e laborioso, o divórcio não soluciona o problema da redenção, porque ninguém se reúne no casamento humano ou nos empreendimentos de elevação espiritual, no mundo, sem o vínculo do passado, e esse vínculo, quase sempre, significa débito no Espírito ou compromisso vivo e delongado no tempo. O homem ou a mulher, desse modo, podem provocar o divórcio e obtê-lo, como sendo o menor dos piores males que lhes possam acontecer… Ainda assim, não se liberam da dívida em que se acham incursos, cabendo lhes voltar ao pagamento respectivo, tão logo seja oportuno.
E porque as nossas muitas interrogações pairavam no ar, o generoso orientador prosseguiu: – No caso de Ildeu e Marcela, já meticulosamente estudado em nossa Mansão, temos duas almas em processo de reajuste, há vários séculos. Para não nos perdermos em compridas perquirições, convém lembrar tão-somente algumas notas da existência última, em que ambos, como marido e mulher, aqui mesmo no Brasil, se entregaram a difíceis experiências. Ele, depois de casado, continuou irrequieto, entre a irresponsabilidade e a aventura, nas quais seduziu duas moças, filhas do mesmo lar.
Primeiramente, enganou uma delas, abandonando a esposa que a Lei lhe havia confiado. Passando, porém, ao convívio da segunda companheira, que patrocinava o desenvolvimento da irmãzinha menor, que os pais à beira do túmulo, lhe haviam entregue, Ildeu não vacilou em aguardar lhe a floração juvenil para submete-la igualmente aos seus caprichos inconfessáveis. Entrando em franca decadência moral, precipitou-as no meretrício, em cujas correntes de sombra as pobres criaturas se viram quais andorinhas aprisionadas na lama… Abandonada a esposa, que era então a mesma companheira de agora, a sofredora mulher, incapaz de sofrear-se no insulamento, após cinco anos de expectativa e solidão, aceitou a companhia de um homem digno e trabalhador, com quem passou maritalmente a viver… Os dias correram sobre os dias e, quando Ildeu, ainda relativamente moço, mas integralmente vencido pela intemperança e pelo deboche, regressou doente à cidade em que se havia consorciado, buscando o aconchego da esposa, cuja fidelidade carinhosa ele mesmo destruíra, não mais na ânsia de ajuda-la ou de amá-la e sim no propósito de escraviza-la, por enfermeira de seu corpo abatido, eis que a reencontra, feliz, junto de outro… Movido de incompreensível ciúme, de vez que renegara o lar sem motivo justo, não suporta ver a alegria da companheira, matando lhe o eleito do coração. Dentro em breve, todo o grupo que Ildeu infelicitou se reúne, inclusive ele próprio, na Esfera Espiritual, onde a justiça da Lei sopesa os méritos e deméritos de cada um… E, com o amparo de Abnegados Benfeitores, regressam as personagens do drama doloroso ao resgate na reencarnação, com Ildeu à frente das responsabilidades, por ter maiores culpas. Marcela concorda em auxilia-lo e retoma o posto antigo, ajudando-o na condição de esposa fiel. Roberto é o companheiro assassinado que volta, do qual Ildeu é devedor da própria vida. Sônia e Márcia são as duas irmãs que ele arrojou ao vício e à delinquência, dele esperando hoje, como filhas queridas o necessário auxílio para a reabilitação.
O Assistente fez pequena pausa e acrescentou: – Vocês não ignoram, porém, que a reencarnação no resgate é também recapitulação perfeita. Se não trabalhamos por nossa intensa e radical renovação para o bem, através do estudo edificante que nos educa o cérebro e do amor ao próximo que nos aperfeiçoa o sentimento, somos tentados hoje pelas nossas fraquezas, como éramos tentados ainda ontem, porquanto nada fizemos pelas suprimir, passando habitualmente a reincidir nas mesmas faltas. Segundo observam, Ildeu, displicente e surdo aos avisos da vida, é o mesmo homem do passado, buscando a suposta felicidade, fora do templo doméstico, desprezando a esposa, querendo estremecidamente às filhinhas nas quais revê as companheiras do pretérito e nada faz por perder a instintiva aversão pelo filhinho, em cujo contato adivinha o antigo rival, que lhe foi vítima da fúria arrasadora.
– Mas – indagou Hilário -, se ele não encontra, em Marcela o amor integral, por que razão, ainda agora, na presente romagem terrena, a teria desposado? a afetividade juvenil não é sinal de confiança e ternura? – Sim – encareceu Silas, bondoso -, é preciso considerar que nos achamos ainda longe de adquirir o verdadeiro amor, puro e sublime. Nosso amor é, por enquanto, uma aspiração de eternidade encravada no egoísmo e na ilusão, na fome de prazer e na egolatria sistemática, que fantasiamos como sendo a celeste virtude. Por isso mesmo, a nossa afetividade terrestre, quando na primavera dos primeiros sonhos da experiência física, pode ser um conjunto de estados mentais, consubstanciando simplesmente os nossos desejos. E nossos desejos se alteram todos os dias… Em razão disso, recordemos o imperativo da recapitulação. Nessa ou naquela idade física, o homem e a mulher, com a supervisão da Lei que nos governa os destinos, encontram as pessoas e as situações de que necessitam para superarem as provas do caminho, provas indispensáveis ao burilamento espiritual de que não prescindem para a justa ascensão às Esferas Mais Altas. Assim é que somos atraídos por determinadas almas e por determinadas questões, nem sempre porque as estimemos em sentido profundo, mas sim porque o passado a elas nos reúne, a fim de que por elas e com elas venhamos a adquirir a experiência necessária à assimilação do verdadeiro amor e da verdadeira sabedoria. É por isso que a maioria dos consórcios humanos, por enquanto, constituem ligações de aprendizado e sacrifício, em que, muitas vezes, as criaturas se querem mutuamente e mutuamente sofrem pavorosos conflitos na convivência uma das outras. Nesses embates, alinham-se os recursos da redenção. Quem for mais claro e mais exato no cumprimento da Lei que ordena seja mantido o bem de todos, acima de tudo, mais ampla liberdade encontra para a vida eterna. Quanto mais sacrifício com serviço incessante pela felicidade dos corações que o Senhor nos confia, mais elevada ascensão à glória do Amor Divino.
– Então – aduzi -, nosso amigo Ildeu estará interrompendo o pagamento da dívida em que se empenhou…
– Isso mesmo.
– E Marcela? – perguntou Hilário – garantirá por ele a sustentação do lar? – É o que esperamos e tudo faremos para auxiliá-la, já que o esposo, mais uma vez, faliu nos contratos assumidos.
– Não será lícito contar, matematicamente, com o heroísmo dela à frente da casa? – insistiu meu colega.
– Quem poderá medir a resistência dos outros? – falou Silas, sorrindo -, Marcela é senhora de si e, com a deserção do esposo, é chamada a encargos duplos. Desejamos sinceramente que ela seja forte e se sobreponha às vicissitudes da existência, mas se resvalar para delituosos desequilíbrios, quer lhe comprometam a estabilidade doméstico, na qual os filhos devem crescer para o bem, mais complicado e mais extenso se fará o débito de Ildeu, porquanto as falhas que ela venha a cometer serão atenuadas pelo injustificável abandono em que a lançou o marido. Quem se faz responsável por nossas quedas, experimenta em si mesmo a ampliação dos próprios crimes.
Hilário meditou… meditou… e disse, em seguida: – Imaginemos, porém, que Marcela e os filhinhos consigam vencer a crise, esmagando com o tempo as necessidades de que são agora vítimas… Figuremo-los terminando a atual reencarnação, com plena vitória moral em confronto com Ildeu, retardado, impenitente, devedor… Se a esposa e os filhos, então definitivamente guindados à luz, dispensarem qualquer contato com a sombra, em franca ascensão às linhas superiores da vida, a quem pagará Ildeu o montante das dívidas em que se agrava? Silas estampou significativo gesto facial e explicou: – Embora estejamos todos, uns diante dos outros, em processo reparador de culpas recíprocas, em verdade, antes de tudo, somos devedores da Lei em nossas consciências. Fazendo mal aos outros, praticamos o mal contra nós mesmos. Caso Marcela e os filhinhos se ergam, um dia, a plenos céus, e na hipótese de guardar-se nosso amigo mergulhado na Terra, vê-los-a Ildeu na própria consciência, sofredores e tristes, quais os tornou, atormentado pelas recordações que traçou para si mesmo e pagará em serviço a outras almas da senda evolutiva o débito que lhe onera o Espírito, de vez que, ferindo os outros, na essência estamos ferindo a obra de Deus, de cujas leis soberanas nos fazemos réus infelizes, reclamando quitação e reajuste.
– Isso quer dizer…
A palavra de Hilário, porém, foi cortada pela observação do Assistente que, em lhe surpreendendo as ideias, falou firme: – Isso quer dizer que, se Ildeu, mais tarde, desejar reunir-se a Marcela, Roberto, Sônia e Márcia, então redimidos nas Esferas Superiores, deverá possuir uma consciência tão dignificada e sublime quanto a deles, de modo a não se envergonhar de si mesmo, considerando-se a probabilidade de triunfo para a esposa e os filhinhos nas provas árduas que o porvir lhes reserva.
– Deus meu!… – clamou Hilário, triste – quanto tempo então para uma empresa dessas!… E quanta dificuldade para o reencontro, se os entes queridos não se dispuserem a esperar!…
– Sim – confirmou Silas -, quem se retarda por gesto não pode queixar-se de quem avança. “A cada um segundo as suas obras”, ensinou o Divino Orientador, e ninguém no Universo conseguirá fugir à Lei.
Eu e Hilário, profundamente tocados pela lição, calamo-nos, confundidos, para orar e pensar.
Espírito : André Luiz Psicografia : Francisco Cândido Xavier Livro : Ação e Reação – Cap. 14

Loading