27 PROCESSOS DE FUGA – DIÁLOGO COM AS SOMBRAS HERMÍNIO C. MIRANDA

A contínua observação desses métodos, ao longo dos anos, vai desenhando para nós um perfil mais nítido dos segredos e mistérios do transviamento moral.
As atitudes agrupam-se e, em cada uma delas, repetem-se os gestos, as palavras, os impulsos, as motivações.
No entanto, guardam todas, e cada uma delas, a sua individualidade e as suas surpresas.
Não sei como explicar esse jogo, entre o inédito e o esperado.
Parece que as posições são basicamente as mesmas, mas, dentro delas, cada um toma o caminho que lhe impõem os seus fantasmas interiores.
Em suma: há certas constantes que se repetem, que se cristalizam, que constituem modelos, padrões, ou o que seja, dentro dos quais a individualidade de cada um se preserva, mantendo certa autonomia.
Ë como se, num conceito amplo de determinismo difuso, eles agissem dentro de um amplo raio de livre escolha.

Vamos a alguns exemplos.

Uma das constantes, identificadas nesses Espíritos que perseguem, que dominam, que espalham a dor, é a fuga.
Fogem de si mesmos, das suas próprias dores, das suas angústias e frustrações.

Sejam quais forem as justificativas que invoquem para as suas atitudes — quando as apresentam — o mecanismo é sempre o mesmo: procuram esquecer seus próprios crimes e aflições, adiar o encontro com a verdade, anestesiar-se na insensibilidade, pelo cruel e desumano processo de acostumar-se à fria contemplação da dor alheia.
É preciso entendê-los bem.
Não são monstros irrecuperáveis, que merecem o santo horror e a condenação eterna.
Não são seres desprezíveis, que tenhamos de abandonar à sua própria sorte, para sempre.
Temos que nos aproximar deles com sentimento de amor fraterno e de compreensão, não com nojo, como se fôssemos os redimidos, e eles os réprobos perdidos em seus crimes.
Temos de entender que estão em fuga.
A couraça de que se revestem émais frágil do que parece, e não é impenetrável aos fluídos sutis do amor.
Defendem-se da dor, atacando, agredindo, maltratando.
Tentam cicatrizar suas próprias feridas abrindo ferimentos em outros corações.
No fundo, sabem que podem somente adiar o reencontro com as suas realidades interiores, mas não ignorá-las para sempre.
Quantos deles nos têm dito que sabem muito bem disso, mas que saberão “ser homens”, quando chegar, para eles também, a cobrança! Enquanto não chega, prosseguem suas tarefas abomináveis.
Sabem de suas responsabilidades, e imaginam, com bastante precisão, o que os espera um dia, quando “caírem”.
Por isso mesmo é que resistem, enquanto podem, buscando apoio nas organizações a que pertencem, pois essa é a lei a que se apegam: a lei da solidariedade incondicional, que os protege mutuamente do dia do despertamento.

Essa é a doutrina da fuga.

Por outro lado, quem foge precisa de esconderijos para ocultar-se.
No caso, ocultar-se de si mesmo.
São muitos, esses refúgios.
O principal deles talvez seja o esquecimento do passado.
Este recurso é básico, essencial mesmo, para aquele que precisa, perante sua própria consciência, justificar, por exemplo, uma vingança impiedosa, que se prolonga no tempo e vara séculos ou milênios.
Enquanto o perseguidor estiver “esquecido” das origens de sua verdadeira dor, ele sente forças, em si mesmo, para perseguir aquele que o feriu.
Se ele voltar sobre seus passos, ao seu pretérito, irá descobrir que sofreu aquele ferimento exatamente porque, antes, causou dor semelhante a alguém, faltando, assim, à lei universal da fraternidade, O esquecimento o ajuda a manter acesa a chama rubra do ódio e, portanto, a da vingança.
É vítima “inocente” de um crime inominável.
Aquele miserável roubou-lhe a mulher, espezinhou a sua honra, levou-o ao crime, ao suicídio, à miséria, a ele, que sempre foi bom e correto, que nenhum mal fez a ninguém.
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Se um dia ele descobre, por exemplo, que há séculos vêm os dois disputando, à ponta de punhal, aquela mesma mulher, através de várias encarnações infelizes, sua perplexidade é enorme, e, muitas vezes, o impacto dessa lembrança é suficiente para sacudi-lo fora de seu esconderijo psicológico e recolocá-lo na trilha evolutiva da recuperação interior.

De outras vezes, nem isso basta, pois são muitos os que, através de uma longa e tenebrosa experiência espiritual, quase sempre no lado errado da vida, conhecem bem o passado e, mesmo assim, prosseguem na fria execução de seus planos medonhos.
Estes também estão em fuga, mas não buscam os esconderijos habituais, e sim o atordoamento da ação.
Enquanto estão atordoados, organizando planos tenebrosos e os levando a efeito, vivem a salvo das suas próprias dores.
A desesperada atividade mantém-nos, de certa forma, alheios aos seus dramas e desesperos.

Um deles confessou-me que conhecia bem o seu passado.
Ocupara, em cada vida, a posição que lhe convinha aos propósitos pessoais.
Amava a glória e o poder, acima de tudo.
Responsabilidades, claro que tinha muitas.
E daí?

Outros dizem que não se importam com o resgate.
O que importa é o que fazem no momento, Isso lhes agrada.
É isso que desejam fazer; seja a vingança, seja a disputa de maiores fatias de poder, sejam as campanhas mais amplas, em que emprestam sua colaboração à organização a que pertencem, e que, por sua vez, também os protege.

A imaginação de cada um cria seu próprio mecanismo de fuga.
Há os que se prendem aos conceitos teológicos, depois de desfigurá-los e corrompê-los, para servirem aos seus propósitos.
Isto éparticularmente válido para os antigos sacerdotes, que se apoiam em fantásticas teologias, e em textos escolhidos com extremo cui

dado, no próprio Evangelho do Cristo.
Quantos deles temos encontrado nas tarefas mediúnicas!

Lembro-me de um, em particular.
Montara sua própria organização, nas trevas.

Apresenta-se aparentemente muito humilde e manso.
Informa-me que “consentiu em receber-nos na sua câmara”, porque a entrevista lhe foi solicitada por pessoas que ele respeita e admira.
É claro que se vê naquilo que chama sua própria “câmara”.
É a segunda vez, em muitos anos, que concorda em tratar diretamente com alguém, pois tem seus auxiliares para contactos e execução dos planos.
Quer saber o que desejamos dele, embora certamente o saiba.

O diálogo prossegue, tranqüilo, enquanto ele permanece escondido na sua mansidão aparente, mas as ameaças mais claras começam a filtrar-se: não nos deixará sair dali, sem saber do que se trata, pois dignou-se a conceder-nos a entrevista.
Ao fim de longa conversa, difícil, em que ele se mantém ameaçador, na sua aparente tranqüilidade, nossos benfeitores revelam-nos que se trata de um antigo franciscano extraviado.
Aos poucos, conseguimos despertá-lo para a realidade que ele tanto teme enfrentar.

Qual teria sido o mecanismo do fenômeno, que se poderia chamar de “inversão de local”? Como e por que o Espírito, incorporado no médium, no cômodo em que realizamos os trabalhos mediúnicos, poderia julgar-se recebendo-nos em sua “câmara”? Os nossos mentores não nos explicaram o ocorrido, mas creio que não seria fantasioso admitir, especulativamente, nesse caso, a velha e segura técnica da hipnose.
Por mais defendidos que se julguem encontrar esses companheiros desarvorados, em suas furnas escuras, não são invulneráveis à misericórdia divina.
Se o fossem, não teriam jamais a oportunidade de se libertarem de sua condição tão dolorosa.
Ao passo que eles não têm condições de peso específico para subir às regiões da luz a fim de promover distúrbios e “conquistas”, o que seria inadmissível, os Espíritos iluminados podem descer, sacrificialmente, aos antros da angústia, e o fazem com freqüência, a fim de tentar o resgate de companheiros que já ofereçam um mínimo de condições para ser ajudados.

De algum modo, cujo conhecimento ainda nos escapa, aquele irmão deve ter sido preparado e condicionado de tal forma, pelos trabalhadores do Cristo, que, mesmo deslocado, em nosso grupo sentia-se ainda em toda a segurança do seu reduto, no qual condescendia generosamente em receber-nos, com as suas pouco veladas ameaças.

É possível também — e esta seria uma forma alternativa de considerar o caso — que o nosso médium tenha realmente sido desdobrado, sob a proteção do Alto, até o “local”, e de lá transmitido a mensagem que nos possibilitou o diálogo.
Frequentemente, temos presenciado esse fenômeno do deslocamento de médiuns, que, desdobrados do corpo físico, vão ao encontro do Espírito que os nossos mentores desejam pôr em contacto conosco.

Deixo abertas as opções mencionadas, bem como outras que não me tenham ocorrido.
Um dia saberemos o suficiente para entender melhor essa extraordinária faculdade que é a mediunidade.

*

São muitos os que falam em nome de uma fé que não possuem mais, em nome de um Deus que não amam, de um Cristo que pretendem colocar a serviço de suas paixões subalternas e de um Evangelho que somente citam naquilo que lhes convém, com as interpretações que lhes interessam.
Não negam a reencarnação, nem a sobrevivência, nem a comunicabilidade dos Espíritos; mas isto será revelado — dizem — quando a Igreja for restabelecida em toda a sua glória, ou seja, quando voltar a dominar, como instrumento de suas ambições.

Às vezes o esconderijo é a cultura intelectual.
Constroem seus próprios sistemas, Inventam brilhantes sofismas e adestram-se em uma dialética deformada, mas, nem por isso, frágil e desarticulada; ao contrário, bastante inteligente, pois, sendo eles inteligentes, precisam de um inteligente mecanismo de fuga.

Enfim, cada um constrói o seu esconderijo, inventa suas defesas, segundo suas Inclinações, recursos e intenções.
A finalidade, porém, é uma só: esconder-se das próprias angústias.
Quando descobrimos suas motivações, estamos a caminho de poder ajudá-los a libertar-se da dor.
Os indícios precisos eles mesmos no-los fornecem.
É preciso estarmos atentos, vigilantes, pacientes e prontos a servi-los naquilo que lhes convém aos Espíritos atormentados, e não naquilo que possa estimular-lhes as paixões abrasadoras.

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