4 Primeiros labores apostólicos – PAULO E ESTEVÃO – FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

Transformado em rude operário, Saulo de Tarso apresentava notável

diferença fisionômica.
Acentuara–se-lhe a feição de asceta.
Os olhos, contudo,

denunciando o homem ponderado e resoluto, revelavam igualmente uma paz

profunda e indefinível.

Compreendendo que a situação não lhe permitia idealizar grandes projetos

de trabalho, contentava-se em fazer o que fosse possível.
Sentia prazer em

testemunhar a mudança de conduta aos antigos camaradas de triunfo, por

ocasião das festividades tarsenses.
Orgulhava -se, quase, de viver do modesto

rendimento do seu árduo labor.
Vezes várias, ele própri o atravessava as

praças mais freqüentadas, carregando pesados fardos de pelo caprino.
Os

conterrâneos admiravam a atitude humilde, que era agora o seu traço

dominante.
As famílias ilustres contemplavam-no com piedade.
Todos os que o

conheceram na fase áurea da juventude, não se cansavam de lamentar aquela

transformação.
A maioria tratava -o como alienado pacífico.
Por isso, nunca

faltavam encomendas ao tecelão das proximidades do Tauro.
A sim patia dos

seus concidadãos, que jamais lhe compreende riam integralmente as idéias

novas, tinha a virtude de amplificar seu esforço, aumentando -lhe os parcos recursos.

Ele, por sua vez, vivia tranqüilo e satisfeito.
O programa de Abigail

constituía permanente mensagem ao seu coração.
Levantava -se, todos os

dias, procurando amar a tudo e a todos; para prosseguir nos caminhos retos,

trabalhava ativamente.
Se lhe chegavam desejos ansiosos, inquietações para

intensificar suas atividades fora do tempo apropriado, bastava esperar; se

alguém dele se compadecia, se outros o ape lidavam de louco, desertor ou

fantasista, procurava esquecer a incompre ensão alheia com o perdão sincero,

refletindo nas vezes muitas que, também ele, ofendera os outros, por igno –

rância.
Estava sem amigos, sem afetos, suportando os desencantos da

soledade que, se não tinha companheiros carinhosos, também não necessitava

temer os sofrimentos oriundos das amizades infiéis.
Procurava encontrar no dia

o colaborador valioso que não lhe subtraia as opor tunidades.
Com ele tecia

tapetes complicados, barracas e t endas, exercitando-se na paciência

indispensável aos trabalhos outros que ainda o esperavam nas encruzilha das

da vida.
A noite era a bênção do espírito.
A exis tência corria sem outros

pormenores de maior impor tância, quando, um dia, foi surpreendido com a

visita inesperada de Barnabé.

Oex-levita de Chipre encontrava-se em Antioquia.
a braços com sérias

responsabilidades.
A igreja ali fun dada reclamava a cooperação de servos

inteligentes.

Inúmeras dificuldades espirituais a serem resolvidas, in tensos serviços a

fazer.
A instituição fora iniciada por discípulos de Jerusalém, sob os alvitres

generosos de Simão Pedro.
O ex -pescador de Cafarnaum ponderou que

deveriam aproveitar o período de calma, no capítulo das perseguições, para

que os laços do Cristo fossem dilatados.
Antioquia era dos maiores centros

operários.
Não faltavam contribuintes para o custeio das obras, porque o

empreendimento grandioso tivera repercussão nos ambientes de trabalho mais

humildes; entretanto, escasseavam os legítimos trabalhador es do pensamento.

Ainda, aí, entrou a compreensão de Pedro para que não faltasse ao tecelão de

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Tarso o ensejo devido.
Observando as dificuldades, depois de indicar Barnabé

para a direção do núcleo do “Caminho”, aconselhou -o a procurar o convertido

de Damasco, a fim de que sua capacidade alcançasse um campo novo de

exercício espiritual.

Saulo recebeu o amigo com imensa alegria.

Vendo-se lembrado pelos irmãos distantes, tinha a impressão de receber

um novo alento.

O companheiro expôs o elevado plano da igreja que lhe reclamava o

concurso fraterno, o desdobramento dos serviços, a colaboração constante de

que poderiam dispor para a construção das obras de Jesus -Cristo.
Barnabé

exaltou a dedicação dos homens humildes que cooperavam com ele.
A

instituição, todavia, reclamava irmãos dedicados, que conhecessem

profundamente a Lei de Moisés e o Evangelho do Mestre, a fim de não ser

prejudicada a tarefa da iluminação intelectual.

O ex-rabino edificou-se com a narração do outro e não teve dúvidas em

atender ao apelo.
Apenas apresentava uma condição, qual a de prosseguir no

seu ofício, de maneira a não ser pesado aos seus confrades de Antio quia.
Inútil

qualquer objeção de Barnabé, nesse sentido.

Pressuroso e prestativo, Saulo de Tarso em breve se instalava em

Antioquia, onde passou a cooperar ativamente com os amigos do Evangelho.

Durante largas horas do dia, consertava tapetes ou se entretinha no trabalho

de tecelagem.
Destarte, ganhava o necessário para viver, tornando -se um

modelo no seio da nova igreja.
Utilizando o grande cabedal de experiências já

adquirido nas refregas e padecimentos do mundo, jamais o viam ocupar os

primeiros lugares.
Nos Atos dos Apóstolos, vemos -lhe o nome citado sempre

por último, quando se referem aos colaboradores de Barnabé.
Saulo havia

aprendido a esperar Na comunidade, preferia os labores mais simples.
Sentia –

se bem, atendendo aos doentes numerosos.
Recordava Simão Pedro e

procurava cumprir os novos deveres na pauta da bondade despretensiosa,

embora imprimindo em tudo o traço da sua sinc eridade e franqueza, quase

ásperas.

A igreja não era rica, mas a boa -vontade dos componentes parecia provê-la

de graças abundantes.

Antioquia, cidade cosmopolita, tornara -se um foco de grandes devassidões.

Na sua paisagem enfeitada de mármores preciosos, que deixavam entrever a

opulência dos habitantes, proliferava toda a espécie de abusos.
Os fortunosos

entregavam-se aos prazeres licenciosos, desenfreadamente.
Os bosques

artificiais reuniam assembléias galantes, onde criminosa tolerância

caracterizava todos os propósitos.
A riqueza pública ensejava grandes

possibilidades às extravagâncias.
A cidade estava cheia de mercadores que se

guerreavam sem tréguas, de ambições inferiores, de dramas passionais.
Mas,

diariamente, à noite, se reuniam, na casa singel a onde funcionava a célula do

“Caminho”, grandes grupos de pedrei ros, de soldados paupérrimos, de

lavradores pobres, ansiosos todos pela mensagem de um mundo melhor.
As

mulheres de condição humilde compareciam, igualmente, em grande número.

A maioria dos freqüentadores interessavam-se por conselhos e consolações,

remédios para as chagas do corpo e do espírito.

Geralmente, eram Barnabé e Manahen os pregado res mais destacados,

ministrando o Evangelho às assembléias heterogêneas.
Saulo de Tarso

limitava-se a cooperar.
Ele mesmo notara que Jesus, por certo, reco mendara

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absoluto recomeço em suas experiências.
Certa feita, fez o possível por

conduzir as pregações gerais, mas nada conseguiu.
A palavra, tão fácil noutros

tempos, parecia retrair-se-lhe na garganta.
Compreendeu que era justo

padecer as torturas do reinício, em virtude da oportunidade que não soubera

valorizar.
Não obstante as barreiras que se antepunham às suas atividades, ja –

mais se deixou avassalar pelo desânimo.
Se ocupava a tribuna, tinha ex trema

dificuldade na interpretação das idéias mais simples.
Por vezes, chegava a

corar de vergonha ante o público que lhe aguardava as conclu sões com

ardente interesse, dada a fama de pregador de Moisés, no Templo de

Jerusalém.
Além disso, o sublime acont ecimento de Damasco cercava-o de

nobre e justa curiosidade.
O próprio Barnabé, várias vezes, surpreendera -se

com a sua dialética confusa na inter pretação dos Evangelhos e refletia na

tradição do seu passado como rabino, que não chegara a conhecer pessoal –

mente, e na timidez que o assomava, justo no momento de conquistar o

público.
Por esse motivo, foi afastado discretamente da pregação e aproveitado

noutros misteres.
Saulo, porém, compreendia e não desanimava.
Se não era

possível regressar, de pronto.
ao labor da pregação, preparar-se-ia, de novo,

para isso.
Nesse intuito, retinha irmãos humildes na sua tenda de trabalho e,

enquanto as mãos teciam com segurança, entabulava conversas sobre a

missão do Cristo.
À noite, promovia palestras na igreja com a coo peração de

todos os presentes.
Enquanto não se organizava a direção superior para o

trabalho das assembléias, sentava -se com os operários e soldados que

compareciam em grande número.
Interessava a atenção das lavadeiras, das

jovens doentes, das mães humil des.
Lia, às vezes, trechos da Lei e do

Evangelho, estabelecia comparações, provocava pareceres novos.
Dentro

daquelas atividades constantes, a lição do Mestre parecia sempre tocada de

luzes progressivas.
Em breve, o ex -discípulo de Gamaliel tornava-se um amigo

amado de todos.
Saulo sentia-se imensamente feliz.
Tinha enorme satisfação

sempre que via a tenda pobre repleta de irmãos que o procuravam, tomados de

simpatia.
As encomendas não faltavam.
Havia sempre trabalho suficiente para

não se tornar pesado a ninguém.
Ali conheceu Trófimo, que lhe seria

companheiro fiel em muitos transes difíceis; ali abraçou Tito, pela primeira vez,

quando esse abnegado colaborador mal saía da infância.

A existência, para o ex-rabino, não podia ser mais tranqüila nem mais bel a.

Era-lhe o dia cheio das notas harmoniosas do trabalho digno e construtivo; à

noite, recolhia-se à igreja em companhia dos irmãos, entre gando-se

prazenteiro às lides sublimes do Evangelho.

A instituição de Antioquia era, então, muito mais sedutora que a própria

igreja de Jerusalém.
Vivia-se ali num ambiente de simplicidade pura, sem

qualquer preocupação com as disposições rigoristas do judaísmo.
Havia

riqueza, porque não faltava trabalho.
Todos ama vam as obrigações diuturnas,

aguardando o repouso da noi te nas reuniões da igreja, qual uma bênção de

Deus.
Os israelitas, distantes do foco das exigências farisaicas, cooperavam

com os gentios, sentindo-se todos unidos por soberanos laços fraternais.

Raríssimos os que falavam na circuncisão e que, por constitu írem fraca

minoria, eram contidos pelo convite amoroso à fraternidade e àunião.
As

assembléias eram dominadas por ascendentes profundos de amor espiritual.
A

solidariedade estabelecera-se com fundamentos divinos.
As dores e os júbilos

de um pertenciam a todos.
A união de pensamentos em torno de um só

objetivo dava ensejo a formosas manifestações de espiritualidade.
Em noites

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determinadas, havia fenômenos de “vozes diretas”.
A instituição de Antioquia

foi um dos raros centros apostólicos onde semelhantes m anifestações

chegaram a atingir culminância indefinível.
A fraternidade reinante justificava

essa concessão do Céu.
Nos dias de repouso, a pequena comu nidade

organizava estudos evangélicos no campo.
A in terpretação dos ensinos de

Jesus era levada a efeito em algum recanto ameno e solitário da Natureza,

quase sempre às margens do Orontes.

Saulo encontrara em tudo isso um mundo diferente.
A permanência em

Antioquia era interpretada como um auxílio de Deus.
A confiança recíproca, os

amigos dedicados, a boa compreensão, constituem alimento sagrado da alma.

Procurava valer-se da oportunidade, a fim de enriquecer o celeiro íntimo.

A cidade estava repleta de paisagens morais menos dignas, mas o grupo

humilde dos discípulos anônimoS aumentava sempre em legítimo s valores

espirituais.

A igreja tornou-se venerável por suas obras de cari dade e pelos fenômenos

de que se constituíra organismo central –

Viajantes ilustres visitavam-na cheios de interesse.
Os mais generosos

faziam questão de lhe amparar os encargos de benemerência social.
Foi aí que

surgiu, certa vez, um médico muito jovem, de nome Lucas.
De pas sagem pela

cidade, aproximou-se da igreja animado por sincero desejo de aprender algo

de novo.
Sua atenção fixou-se, de modo especial, naquele homem de

aparência quase rude, que fermentava as opiniões, antes que Bar nabé

empreendesse a abertura dos trabalhos.
Aquelas atitudes de Saulo.

evidenciando a preocupação generosa de ensinar e aprender

simultaneamente, impressionaran-no a ponto de apresentar-se ao ex-rabino,

desejoso de ouvi-lo com mais freqüência.

— Pois não — disse o Apóstolo satisfeito —, minha tenda está às suas

ordens.

E enquanto permaneceu na cidade, ambos se em penhavam diariamente

em proveitosas palestras, concernentes ao ensino de Jesus.
Retomando aos

poucos seu poder de argumentação, Saulo de Tarso não tardou a incutir no

espírito de Lucas as mais sadias convicções.
Desde a primeira entrevista, o

hóspede de Antioquia não mais perdeu uma só daquelas assembléias simples

e construtivas.
Na véspera de partir, fez uma observação que modificaria para

sempre a denominação dos discípulos do Evangelho.

Barnabé havia terminado os comentários da noite, quando o médico tomou

a palavra para despedir -se.
Falava emocionado e, por fim, considerou

acertadamente:

— Irmãos, afastando-me de vós, levo o propósito de trabalhar pelo Mestre,

empregando nisso todo o cabedal de minhas fracas forças.
Não tenho dúvida

alguma quanto à extensão deste movimento espiritual.
Para mim, ele

transformará o mundo inteiro.
Entretanto, pondero a necessidade de

imprimirmos a melhor expressão de unidade às suas manifestações.
Quero

referir-me aos títulos que nos identificam a comunidade.
Não vejo na palavra

“caminho” uma designação perfeita, que traduza o nosso esforço, Os discípulos

do Cristo são chamados viajores”, “peregrinos”, “caminheiros”.
Mas há vian –

dantes e estiadas de todos os matizes, O mal tem, igualmente, os seus

caminhos, Não seria mais justo chamarmo-nos — cristãos — uns aos outros?

Este título nos recordará a presença do Mestre, nos dará energia em seu nome

e caracterizará, de modo perfeito, as nossas atividades em concordância com

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os seus ensinos.

A sugestão de Lucas foi aprovada com geral alegria.
O próprio Barnabé

abraçou-o, enternecidamente, agradecendo o acertado alvitre, que vinha

satisfazer a certas aspirações da comunidade inteira.
Saulo consolidou suas

impressões excelentes, a respeito daquela vocação supe rior que começava a

exteriorizar-se.

No dia seguinte, o novo convertido despediu -se do ex-rabino com

lágrimas de reconhecimento.
Partiria para a Grécia, mas fazia questão de

lembrá-lo em todos os pormenores da nova tarefa.
Da porta de sua tenda rús –

tica, o ex-doutor da Lei contemplou o vulto de Lucas até que desaparecesse ao

longe, voltando ao tear, de olhos úmido s.

Gratamente emocionado reconhecia que, no trato do Evangelho,

aprendera a ser amigo fiel e dedicado.
Cotejava os sentimentos de agora com

as concepções mais antigas e verificava profundas diferen ças.
Outrora, suas

relações se prendiam a conveniências so ciais, os afeiçoados vinham e

seguiam sem deixar grandes sinais em sua alma vibrátil; agora, o coração

renovara-se em Jesus-Cristo, tornara-se mais sensível em contacto com o

divino, as dedicações sinceras insculpiam-se nele para sempre.

O alvitre de Lucas estendeu-se rapidamente a todos os núcleos

evangélicos, inclusive Jerusalém, que o recebeu com especial simpatia.
Dentro

de breve tempo, em toda parte, a palavra “cristianismo” substituia a palavra

caminho”.

A igreja de Antioquia continuava oferecendo as mais belas expressões

evolutivas.
De todas as grandes cidades afluiam colaboradores sinceros.
As

assembléias estavam sempre cheias de revelações.
Numerosos irmãos

profetizavam, animados do Espírito Santo (1).
Foi aí que Agabo, grande

inspirado pelas forças do plano superior, recebeu a mensagem referente às

tristes provações de que Jerusalém seria vítima.
Os orientadores da instituição

ficaram sobremaneira impressionados.
Por insistência de Saulo, Barnabé

expediu um mensageiro a Simão Pedro, enviando no tícias e exortando-o à vigilância.

O emissário regressou, trazendo a impressão de surpresa do ex –

pescador, que agradecia os apelos ge nerosos.

(1) Ninguém deverá ignorar que Espírito Santo designa a legião dos

Espíritos santificados na luz e no amor, que cooperam com o Cristo

desde os primeiros tempos da Huma nidade.
— (Nota de Emmanuel.
)

Com efeito, daí a meses, um portador da igreja de Jerusalém chegava

apressadamente a Antioquia, tra zendo notícias alarmantes e dolorosas.
Em

longa missiva, Pedro relatava a Barnabé os últimos fatos que o acabrunhavam.

Escrevia na data em que Tiago, filho de Zebedeu, sofrera a pena de morte, em

grande espetáculo público.
Herodes Agripa não lhe tolerara as pre gações

cheias de sinceridade e apelos justos, O irmão de Jo ão vinha da Galiléia com a

primitiva franqueza dos anúncios do novo Reino.
Inadaptado ao convencio –

nalismo farisaico, levara muito longe o sentido de suas exortações profundas.

Verificou-se perfeita repetição dos acontecimentos que assinalaram a morte de

Estevão.
Os judeus exasperaram-se contra as noções de liberdade religiosa.

Sua atitude, sincera e simples, foi levada à conta de rebeldia.
Tremendas

perseguições irromperam sem tréguas.
A mensagem de Pedro relatava

também as penosas dificuldades da igreja.
A cidade sofria fome e epidemias.

195

Enquanto a perseguição cruel apertava o cerco, inumeráveis filas de famintos e

doentes batiam-lhe às portas.
O ex-pescador solicitava de Antioquia os so –

corros possíveis.

Barnabé apresentou as notícias, de alma confran gida.
A laboriosa

comunidade solidarizou-se, de bom grado, para atender a Jerusalém.

Recolhidas as cotas de auxílio, o ex -levita de Chipre prontificou-se a ser o

portador da resposta da igreja; Barnabé, porém, não poderia partir só.
Surgiram

dificuldades na escolha do companheiro necessário.
Sem hesitar, Saulo de

Tarso ofereceu-se para lhe fazer companhia.
Trabalhava por conta própria —

explicou aos amigos — e desse modo poderia tomar a iniciativa de

acompanhar Barnabé, sem esquecer as obrigações que ficavam à sua espera.

O discípulo de Simão Pedro alegrou -se.
Aceitou, jubiloso, o oferecimento.

Daí a dois dias, ambos demandavam Jerusalém cora josamente.
A jornada

era assaz difícil, mas os dois ven ceram os caminhos no menor prazo de tempo.

Imensas surpresas aguardavam os emissários de Antioquia, que já não

encontraram Simão Pedro em Jerusalém.
As autoridades haviam efetuado a

prisão do ex-pescador de Cafarnaum, logo após a dolorosa execução do filho

de Zebedeu.
Amargas provações ha viam caído sobre a igreja e s eus

discípulos.
Saulo e Barnabé foram recebidos especialmente por Prócoro, que

os informou de todos os sucessos.
Por haver solicitado pessoalmente o

cadáver de Tiago para dar -lhe sepultura, Simão Pedro fora preso, sem

compaixão e com todo o desrespeito, pe los criminosos sequazes de Herodes.

Mas, dias depois, um anjo visitara o cárcere do Apóstolo, res tituindo-o à

liberdade.
O narrador referiu-se ao feito, com os olhos fulgurantes de fé.

Contou o júbilo dos irmãos quando Pedro surgiu à noite com o relato da sua

libertação.
Os companheiros mais ponderados induzi ram-no, então, a sair de

Jerusalém e esperar na igreja incipiente de Jope a normalidade da situação.

Prócoro contou como o Apóstolo relutara em aquiescer a esse alvitre dos mais

prudentes.
João e Filipe haviam partido.
As autoridades apenas toleravam a

igreja em consideração à personalidade de Tiago, que, pelas suas ati tudes de

profundo ascetismo impressionava a mentalidade popular, criando em torno

dele uma atmosfera de respeito intangível.
Na mesma noite da libertação, por

atender-lhe a insistência, Pedro fora conduzido à igreja pelos amigos.
Desejava

ficar, despreocupado das conseqüên cias; mas, quando viu a casa cheia de

enfermos, de famintos, de mendigos andrajosos, houve de ceder a Tiago a

direção da comunidade e partir para Jope, a fim de que os pobrezinhos não

tivessem a situação agravada por sua causa.

Saulo mostrava-se grandemente impressionado com tudo aquilo.
Junto de

Barnabé, tratou logo de ouvir a palavra de Tiago, o filho de Alfeu.
O Ap óstolo

recebeu-os de bom grado, mas, podiam-se-lhe notar desde logo os receios e

inquietações.
Repetiu as informações de Prócoro, em voz baixa, como se

temesse a presença de delatores; alegou a necessidade de transigência com

as autoridades; invocou o prec edente da morte do filho de Zebedeu; referiu -se

às modificações essenciais que intro duzira na igreja.
Na ausência de Pedro,

criara novas disciplinas.
Ninguém poderia falar do Evangelho sem referir -se à

Lei de Moisés.
As pregações só poderiam ser ouvidas p elos circuncisos.
A

igreja estava equiparada às sinagogas.
Saulo e o companheiro ouviram -no com

grande surpresa.
Entregaram-lhe em silêncio o auxílio financeiro de Antioquia.

A ausência eventual de Simão transformara a es trutura da obra evangélica.

Aos dois recém-chegados tudo parecia inferior e diferente.
Barnabé, sobretudo,

196

notara algo, em particular.
Ë que o filho de Alfeu, elevado à chefia provisória,

não os convidou para se hospedarem na igreja.
À vista disso, o discípulo de

Pedro foi procurar a casa de sua irmã Maria Marcos, mãe do futuro evangelista,

que os recebeu com grande júbilo.
Saulo sentiu -se bem no ambiente de

fraternidade pura e simples.
Barnabé, por sua vez, reconheceu que a casa da

irmã se tornara o ponto predileto dos irmãos mais dedicado s ao Evangelho.
Ali

se reuniam, à noite, às ocultas, como se a verdadeira igreja de Jerusalém

houvesse transferido sua sede para um reduzido círculo familiar.
Observando

as assembléias íntimas do santuá rio doméstico, o ex-rabino recordou a

primeira reunião de Damasco.
Tudo era afabilidade, carinho, acolhimento.
A

mãe de João Marcos era uma das discípulas mais de sassombradas e

generosas.
Reconhecendo as dificuldades dos irmãos de Jerusalém, não

vacilara em colocar seus bens à disposição de todos os necessi tados, nem

hesitou em abrir as portas para que as reuniões evangélicas, em sua feição

mais pura, não sofressem solução de conti nuidade.

A palestra de Saulo impressionou -a vivamente.
Seduziam-na, sobretudo,

as descrições do ambiente fraternal da igreja an tioquiana, cujas virtudes

Barnabé não cessava de glosar instantemente.

Maria expôs ao irmão o seu grande sonho.
Queria dar o filho, ainda muito

jovem, a Jesus.
De há muito vinha preparando o menino para o apostolado.

Todavia, Jerusalém afogava-se em lutas religiosas, sem tréguas.
As

perseguições surgiam e ressurgiam.
A organização cristã da cidade

experimentava profundas alternativas.
Só a paciência de Pedro conseguia

manter a continuidade do ideal divino.
Não seria melhor que João Marcos se

transferisse para Antioquia, junto do tio? Barnabé não se opôs ao plano da irmã

entusiasmada.
O jovem, a seu turno, seguia as conversações, mostrando -se

satisfeito.
Chamado a opinar, Saulo percebeu que os irmãos delibe ravam sem

consultar o interessado.
O rapaz acompa nhava os projetos, sempre jovial e

sorridente.
Foi aí que o ex-doutor da Lei, profundo conhecedor da alma

humana, desviou a palavra, procurando interessá -lo mais diretamente.

— João — disse bondosamente —, sentes, de fato, verdadeira vocação

para o ministério?

— Sem dúvida! — confirmou o adolescente algo perturbado.

— Mas, como defines teus propósitos? — tornou a perguntar o ex-rabino.

— Penso que o ministério de Jesus é uma glória —respondeu um tanto

acanhado sob o exame daquele olhar ardente e inquiri dor.

Saulo refletiu um instante e sentenciou:

— Teus intuitos são louváveis, mas é preciso não esqueceres que a mínima

expressão de glória mundana apenas chega após o serviço.
Se assim

acontece no mundo, que não será com o trabalho para o reino do Cristo?

Mesmo porque, na Terra, todas as glórias passam e a de Jesus é eterna!.
.
.

O jovem anotou a observação e, embora desconcer tado pela profundez

dos conceitos, acrescentou:

— Sinto-me preparado para os labores do Evange lho e, além disso, mamãe

faz muito gosto que eu aprenda os melhores ensinamentos nesse sentido, a

fim de tornar-me um pregador das verdades de Deus.

Maria Marcos olhou o filho cheia de maternal orgu lho.
Saulo percebeu a

situação, teve um dito alegre e depois acentuou:

— Sim, as mães sempre nos desejam todas as glórias deste e do outro

mundo.
Por elas, nunca haveria homens perversos.
Mas, no que nos diz

197

respeito, convém lembrar as tradições evangélicas.
Ainda ontem, lembrei a

generosa inquietação da esposa de Zebedeu, ansiosa pela glorificação dos

filhinhos!.
.
.
Jesus lhe recebeu os anseios maternais, mas, não deixou de lhe

perguntar se os candidatos ao Reino estavam devidamente preparados para

beber do seu cálice.
.
.
E, ainda agora, vimos que o cálice reservado a Tiago

continha vinagre tão amargo quanto o da cruz do Messias!.
.
.

Todos silenciaram, mas Saulo continuou em tom prazenteiro, modificando a

impressão geral:

— Isto não quer dizer que devamos desanimar ante as dificuldades, para

aliciar as glórias legítimas do Reino de Jesus, Os obstáculos renovam as

forças.
A finalidade divina deve representar nosso objetivo supremo.
Se assim

pensares, João, não duvido de teus futuros triunfos.

Mãe e filho sorriram tranqüilos.

Ali mesmo, combinaram a partida do jovem, em companhia de Barnabé.
O

tio discorreu ainda sobre as disciplinas indispensáveis, o espírito de sacrifício

reclamado pela nobre missão.
Naturalmente, se Antioquia representava um

ambiente de profunda paz, era também um núcleo de trabalhos ativos e

constantes.
João precisaria esquecer qualquer expressão de esmorecimento,

para entregar-se, de alma e corpo, ao serviço do Mestre, com absoluta

compreensão dos deveres mais justos.

O rapaz não hesitou nos compromissos, sob o olhar amorável de sua mãe,

que lhe buscava amparar as de cisões com a coragem sincera do coração

devotado a Jesus.

Dentro de poucos dias os três demandavam a formosa cidade do Orontes.

Enquanto João Marcos extasiava-se na contemplação das paisagens, Saulo e

Barnabé entretinham-se em longas palestras, relativamente aos interes ses

gerais do Evangelho.
O ex-rabino voltava sumamente impressio nado com a

situação da igreja de Jerusalém.
Desejaria sinceramente ir até Jope, para

avistar-se com Simão Pedro.
No entanto, os irmãos dissuadiram -no de o fazer.

As autoridades mantinham-se vigilantes.
A morte do Apóstolo chegara a ser

reclamada por vários membros do Sinédrio e do Templo.
Qualquer movimento

mais importante, no caminho de Jope, poderia dar azo à tirania dos prepostos

herodianos.

Francamente — dizia Saulo a Barnabé, mostran do-se apreensivo —,

regresso de ânimo quase abatido aos nossos serviços de Antioquia.
Jerusalém

dá impressão de profundo desmantelo e acentuada indiferença pelas lições do

Cristo.
As altas qualidades de Simão Pedro, na chefia do movimento, não me

deixam dúvidas; mas precisamos cerrar fileiras em torno dele.
Mais que nunca

me convenço da sublime realidade de que Jesus veio ao que era seu, mas não

foi compreendido.

— Sim — obtemperava o ex-levita de Chipre, desejoso de dissipar as

apreensões do companheiro —, confio, antes de tudo, no Cristo; depois,

espero muito de Pedro.
.
.

— Entretanto — insinuava o outro sem vacilar —, precisamos considerar

que em tudo deve existir uma pauta de equilíbrio perfeito.
Nada poderemos

fazer sem o Mestre, mas não é lícito esquecer que Jesus instituiu no mundo

uma obra eterna e, para iniciá-la, escolheu doze companheiros.
Certo, estes

nem sempre corresponderam à expectativa do Senhor; contudo, não deixaram

de ser os escolhidos.
Assim, também precisamos exami nar a situação de

Pedro.

198

Ele é, sem contestação, o chefe legítimo do colégio apostólico, por seu

espírito superior afinado com o pensamento do Cristo, em todas as cir –

cunstâncias; mas, de modo algum poderá operar sozinho.
Como sabemos, dos

doze amigos de Jesus, quatro ficaram em Jerusalém, com residência fixa.
João

foi obrigado a retirar-se; Filipe compelido a abandonar a cidade, com a família;

Tiago volta aos poucos para as comunidades farisaicas.
Que será de Pedro se

lhe faltar a cooperação devida?

Barnabé pareceu meditar seriamente.

— Tenho uma idéia que parece vir de mais alto —disse o ex-doutor da Lei

sinceramente comovido.

E continuou:

— Suponho que o Cristianismo não atingirá seus fins, se esperarmos tão –

só dos israelitas anquilosados no orgulho da Lei.
Jesus afirmou que seus

discípulos viriam do Oriente e do Ocidente.
Nós, que pressentimos a

tempestade, e eu, principalmente, que a conheço nos seus paroxismos, por

haver desempenhado o papel de verdugo, precisamos atrair esses discípulos.

Quero dizer, Barnabé, que temos necessidade de buscar os gentios onde

quer que se encontrem.
Só assim reintegrar -se-áo movimento em função de

universalidade.

O discípulo de Simão Pedro fez um movimento de espanto.

O ex-rabino percebeu o gesto de estranheza e pon derou de modo conciso:

—É natural prever com isso muitos protestos e lutas enormes; no entanto,

não consigo vislumbrar outros recursos.
Não é justo esquecer os grandes

serviços da igreja de Jerusalém aos pobres e necessitados, e creio mesmo que

a assistência piedosa dos seus trabalhos tem sido, muitas vezes, sua tábua de

salvação.
Existem, porém, outros setores de atividade, outros horizontes

essenciais.
Poderemos atender a muitos doentes, ofertar um leito de repouso

aos mais infelizes; mas sempre houve e haverá corpos enfermos e cansados,

na Terra.
Na tarefa cristã, semelhante esforço não poderá ser esque cido, mas

a iluminação do espírito deve estar em primeiro lugar.
Se o homem trouxesse o

Cristo no íntimo, o quadro das necessidades seria completamente modificado.

A compreensão do Evangelho e da exemplificação do Mes tre renovaria as

noções de dor e sofrimento.
O necessi tado encontraria recursos no próprio

esforço, o doente sentiria, na enfermidade mais longa, um escoadouro das

imperfeições; ninguém seria mendigo, por que todos teriam luz cristã para o

auxílio mútuo, e, por fim, os obstáculos da vida seriam amados como

corrigendas benditas de Pai amoroso a filhos inquietos.

Barnabé pareceu entusiasmar -se com a idéia.
Mas, depois de pensar um

minuto, acrescentou:

—Entretanto, esse empreendimento não deveria partir de Jerusalém?

—Penso que não — sentenciou Saulo, de pronto.
—Seria absurdo agravar

as preocupações de Pedro.
Excede a tudo esse movimento de pessoas

necessitadas e abatidas, convergentes de todas as provínci as, a lhe baterem

às portas.
Simão está impossibilitado para o desdobra mento dessa tarefa.

— Mas, e os outros companheiros? — inquiriu Barnabé revelando espírito

de solidariedade.

– Os outros, certo, hão de protestar.
Principalmente agora, que o judaísmo

vai absorvendo os esforços apostólicos, é justo prever muitos clamores.

Contudo, a própria Natureza dá lições neste sentido.
Não clama mos tanto

contra a dor? E quem nos traz maiores bene fícios? Às vezes, nossa redenção

199

está naquilo mesmo que ant es nos parecia verdadeira calamidade.
É

indispensável sacudir o marasmo da instituição de Jerusalém, cha mando os

incircuncisos, os pecadores, os que estejam fora da Lei.
De outro modo, dentro

de alguns poucos anos, Jesus será apresentado como aventureiro vulgar.

Naturalmente, depois da morte de Simão, os adversários dos princípios

ensinados pelo Mestre acharão grande facilidade em deturpar as anotações de

Levi.
A Boa Nova será aviltada e, se alguém perguntar pelo Cristo, daqui a

cinqüenta anos, terá como resposta que o Mestre foi um criminoso comum, a

expiar na cruz os desvios da vida.
Restringir o Evangelho a Jerusalém será

condená-lo à extinção, no foco de tantos dissídios religiosos, sob a política

mesquinha dos homens.
Necessitamos levar a notícia de Jesus a outras

gentes, ligar as zonas de entendimento cristão, abrir estradas novas.
.
.

Será mesmo justo que também façamos anotações do que sabemos de

Jesus e de sua divina exemplificação.
Outros discípu los, por exemplo,

poderiam escrever o que vi ram e ouviram, pois, com a prática, vou

reconhecendo que Levi não anotou mais amplamente o que se sabe do Mestre.

Há situações e fatos que não foram por ele registrados.
Não conviria também

que Pedro e João anotassem suas obser vações mais íntimas? Não hesito em

afirmar que os pósteros hão de rebuscar muitas vezes a tarefa que nos foi

confiada.

Barnabé rejubilava-se com perspectivas tão seduto ras.
As advertências

de Saulo eram mais que justas.
Haveria que prestar informações amplas ao

mundo.

—Tens razão — disse admirado —, precisamos pensar nesses serviços,

mas como?

—Ora — esclareceu Saulo tentando aplainar as dificuldades —, se

quiseres chefiar qualquer esforço neste sentido, podes contar com a minha

cooperação incondicional.
Nosso plano seria desenv olvido na organização de

missões abnegadas, sem outro fito que servir, de forma absoluta, à difusão da

Boa Nova do Cristo.
Começaríamos, por exemplo, em regiões não de todo

desconhecidas, formaríamos o hábito de ensinar as verdades evangélicas aos

mais vários agrupamentos; em seguida, terminada essa experiência,

demandaríamos outras zonas, levaríamos a lição do Mestre a outras gentes.

O companheiro ouvia-o, afagando sinceras esperanças.
Tomado de novo

ânimo, disse ao convertido de Damasco, esboçando o primeiro número do

programa:

—De há muito, Saulo, tenho necessidade de voltar à minha terra, a fim de

resolver certos problemas de família.
Quem sabe poderíamos iniciar o serviço

apostólico através das aldeias e cidades de Chipre? Conforme o resultado,

prosseguiríamos por outras zonas.
Estou informado de que a região em que

demora Antioquia da Pisídia é habitada por gente simples e generosa, e

suponho que colheríamos belos resultados no empreen dimento.

—Poderás contar comigo — respondeu Saulo de Tarso, resoluto.
— A

situação requer o concurso de irmãos corajosos e a igreja do Cristo não poderá

vencer com o comodismo.

Comparo o Evangelho a um campo infinito, que o Senhor nos deu a

cultivar.
Alguns trabalhadores devem ficar ao pé dos mananciais, velando -lhes

a pureza, outros revolvem a terra em zonas determinadas; mas não há

dispensar a cooperação dos que precisam empunhar instrumentos rudes,

desfazer cipoais intensos, cortar espinheiros para ensolarar os caminhos.

200

Barnabé reconheceu a excelência do projeto , mas considerou:

— Todavia, temos ainda a examinar a questão do dinheiro.
Tenho alguns

recursos, mas insuficientes para atender a todas as despesas.
Por outro lado,

não seria possível sobrecarregar as igrejas.
.
.

—Absolutamente! — adiantou o ex-rabino — onde estacionarmos, poderei

exercer o meu ofício.
Por que não? Qualquer aldeia paupérrima tem sempre

teares de aluguel.
Montarei, então, uma tenda móvel!

Barnabé achou graça no expediente e ponderou:

— Teus sacrifícios não serão pequenos.
Não receias as di ficuldades

imprevisíveis?

— Por quê? — interrogou Saulo com firmeza.

Certo, se Deus não me permitiu a vida em família foi para que me

dedicasse exclusivamente ao seu serviço.
Por onde passarmos, montaremos a

tenda singela – E onde não houver tapetes, a con sertar e a tecer, haverá

sandálias.

O discípulo de Simão Pedro entusiasmou -se.
O resto da viagem foi

dedicado aos projetos da futura excursão.
Havia, entretanto, uma coisa a

considerar.
Além da necessidade de submeter o plano à aprovação da igreja

de Antioquia, era indispensável pensar no jovem João Marcos.
Barnabé

procurou interessar o sobrinho nas conversações.
Em breve, o rapaz

convenceu-se de que deveria incorporar -se à missão, caso a assembléia antio –

quiana não a desaprovasse.
Interessou -se por todas as minúcias do programa

tracejado.
Seguiria o trabalho de Jesus, fosse onde fosse.

— E se houver muitos obstáculos? — perguntou Saulo avisadamente.

— Saberei vencê-los — respondeu João, convicto.

— Mas é possível venhamos a experimentar dificul dades sem conta —

continuava o ex-rabino preparando-lhe o espírito – Se o Cristo, que era sem

pecado, encontrou uma cruz entre apodos e flagelos, quando ensinava as

verdades de Deus, que não devemos esperar em nossa condição de almas

frágeis e indigentes?

— Hei de encontrar as forças necessárias.

Saulo contemplou-o, admirado da firme resolução que suas palavras

deixaram transparecer, e observou:

— Se deres um testemunho tão grande como a co ragem que revelas, não

tenho dúvidas quanto à grandeza de tua missão.

Entre confortadoras esperanças, o projeto terminou com formosas

perspectivas de trabalho para os três.

Na primeira reunião, depois de relatar as observa ções pessoais

concernentes à igreja de Jerusalém, Bar nabé expôs o plano à assembléia, que

o ouviu atentamente.
Alguns anciães falaram da lacuna que se abriria na igreja,

expuseram o desejo de que se não quebrasse o conjunto harmonioso e

fraternal.
No entanto, o orador voltou a explicar as necessidades novas do

Evangelho.
Pintou os quadros de Jerusalém com a fideli dade possível, fez a

súmula de suas conversações com Saulo de Tarso e salientou a conveniência

de chamar novos trabalhadores ao serviço do Mestre.

Quando tratou o problema com toda a gravidade que lhe era devida, os

chefes da comunidade mudaram de atitude .
Estabeleceu-se o acordo geral.
De

fato, a situação explanada por Barnabé era muito séria.
Seus parece res

veementes eram mais que justos.
Se perseverasse o marasmo nas igrejas, o

Cristianismo estava destinado a perecer.
Ali mesmo, o discípulo de Simão

201

recebeu a aquiescência irrestrita e, no instante das preces, a voz do Espírito

Santo se fez ouvir no ambiente de simplici dade pura, inculcando fossem

Barnabé e Saulo destacados para a evangelização dos gentios.

Aquela recomendação superior, aquela voz que provinha dos arcanos

celestes, ecoou no coração do ex -rabino como um cântico de vitória espiritual.

Sentia que acabava de atravessar imenso deserto para encontrar de novo a

mensagem doce e eterna do Cristo.
Por conquistar a dignidade espiritual, só

experimentara padecimentos, desde a cegueira dolorosa de Damasco.

Ansiara por Jesus.
Tivera sede abrasadora e terrível.
Pedira em vão a

compreensão dos amigos, debalde buscara o terno acon chego da família.
Mas,

agora, que a palavra mais alta o chamava ao serv iço, deixava-se empolgar por

júbilos infinitos.
Era o sinal de que havia sido considerado digno dos esforços

confiados aos discípulos.
Refletindo como as dores passadas lhe pareciam

pequeninas e infantis, comparadas à alegria imensa que lhe inundava a alma ,

Saulo de Tarso chorou copiosamente, – experimentando maravilhosas

sensações.
Nenhum dos irmãos presentes, nem mesmo Barnabé, poderia

avaliar a grandiosidade dos sentimentos que aquelas lágrimas revelavam.
To –

mado de profunda emoção, o ex -doutor da Lei reconhecia que Jesus se

dignava de aceitar suas oblatas de boa -vontade, suas lutas e sacrifícios.
O

Mestre chamava-o e, para responder ao apelo, iria aos confins do mundo.

Numerosos companheiros colaboraram nas providên cias iniciais, em favor

do empreendimento.

Dentro em pouco, cheios de confiança em Deus, Saulo e Barnabé,

seguidos por João Marcos, despediam-se dos irmãos, a caminho de Selêucia.

A viagem para o litoral decorreu em ambiente de muita alegria.
De quan do a

quando, repousavam à margem do Oronte, para a merenda salutar.
À sombra

dos carvalhos, na paz dos bosques enfeitados de flores, os missionários

comentaram as primeiras esperanças.

Em Selêucia não foi demorada a espera de embar cação.
A cidade estava

sempre cheia de peregrinos que demandavam o Ocidente, sendo freqüentada

por elevado número de navios de toda ordem.
Entusiasmados com o

acolhimento dos irmãos de fé, Barnabé e Saulo em barcaram para Chipre, sob

a impressão de comovente e carinhosa despedida.

Chegaram à ilha, com o jovem João Marcos , sem incidentes dignos de

menção.
Estacionados em Cítium por muitos dias, aí solucionou Barnabé

vários assuntos de seu interesse familiar.

Antes de se retirarem, visitaram a sinagoga, num sábado, com o propósito

de iniciar o movimento.
Como chefe da missã o, Barnabé tomou a palavra,

procurou conjugar o texto da Lei, examinado naquele dia, às lições do

Evangelho, para destacar a superioridade da missão do Cristo.
Saulo notou

que o companheiro explanava o assunto com respeito algo excessivo às tra –

dições judaicas.
Via-se claramente que desejava, antes de tudo, conquistar as

simpatias do auditório; em alguns pontos, demonstrava o temor de encetar o

trabalho, abrindo as lutas tão em desacordo com o seu tempera mento.
Os

israelitas mostraram-se surpreendidos, mas satisfeitos.
Observando o quadro,

Saulo não se sentiu plenamente confortado.
Fazer reparos a Barnabé seria

ingratidão e indisciplina; concordar com o sorriso dos compatrícios

perseverantes nos erros do fingimento fari saico seria negar fidelidade ao

Evangelho.

Procurou resignar-se e esperou.

202

A missão percorreu numerosas localidades, entre vibrações de largas

simpatias.
Em Amatonte, os men sageiros da Boa Nova demoraram mais de

uma semana.
A palavra de Barnabé era profundamente contempori zadora.

Caracterizava-se, em tudo, pelo grande cuidado, de não ofender os melindres

judaicos.

Depois de grandes esforços, chegaram a Nea -Pafos, onde residia o

Procônsul.
A sede do Governo provincial era uma formosa cidade cheia de

encantos naturais e que se assinalava por sólidas expressões de cultura.
O

discípulo de Pedro, porém, estava exausto.
Nunca tivera labores apostólicos

tão intensos.
Conhecendo a deficiên cia do verbo de Saulo nos serviços da

igreja de Antioquia, temia confiar ao ex -rabino as responsabilidades diretas do

ensinamento.

Não obstante sentir-se cansadíssimo, fez a pregação na sinagoga, no

sábado imediato à chegada.
Nesse dia, entretanto, ele estava divinamente ins –

pirado.
A apresentação do Evangelho foi feita com raro brilhantismo.
O próprio

Saulo comoveu-se profundamente.
O êxito foi inexcedível.
A segunda

assembléia reuniu os elementos mais finos; judeus e romanos aglo meravam-se

ansiosos.
O ex-levita fez nova apologia do Cristo, bordando conceitos de

maravilhosa beleza espi ritual.
O ex-doutor da Lei, com os trabalhos

informativos da missão, atendia prazerosamente a todas as consultas, pedidos,

informações.

Nenhuma cidade manifestara tamanho interesse, quanto aquela; os

romanos, em grande número, iam solicitar esclarecimentos quanto aos obje –

tivos dos mensageiros, recebiam notícias do Cristo, reve lando júbilos e

esperanças; desfaziam-se em gestos de espontânea bondade.
Entusiasmados

com o êxito, Saulo e Barnabé organizaram reuniões em casas particulares,

especialmente cedidas para esse fim pelos simp atizantes da doutrina de Jesus,

onde encetaram formoso movimento de curas.
Com alegria infinita, o tecelão

de Tarso viu chegar a extensa fileira dos “filhos do Calvário”.
Eram mães

atormentadas, doentes desiludidos, anciães sem ne nhuma esperança, órfãos

sofredores, que agora procuravam a missão.
A notícia das curas julgadas

impossíveis encheu Nea-Pafos de grande assombro.
Os missionários

impunham as mãos, fazendo preces fervorosas ao Mes sias Nazareno; de

outras vezes, distribuiam água pura, em seu nome.
Extremamente cansado e

achando que o novo auditório não requeria maior erudição, Barnabé

encarregou o companheiro das pregações da Boa Nova; mas, com grande

surpresa, verificou que Saulo se modi ficara radicalmente.
Seu verbo parecia

inflamado de nova luz; tirava do Evangelho ilações tão profundas que o ex –

levita o escutava agora sem dissimular o próprio espanto.
Notava,

particularmente, o carinho do ex -doutor no apresentar os ensinamentos do

Cristo aos mendigos e sofredores.
Falava como alguém que houvesse convivido

com o Senhor, por largos anos.
Referia -se a certos lances das lições do

Mestre com um manancial de lágrimas nos olhos.
Prodigiosas consolações

derramavam-se no espírito das turbas.
Dia e noite, havia operários e

estudiosos copiando as anotações de Levi.

Os acontecimentos abalaram a opinião da cidade em peso.
Os resultados

eram os mais confortadores.
Foi quando enorme surpresa chegou ao Espírito

dos missionários.

A manhã ia alta.
Saulo atendia a numerosos neces sitados quando um

legionário romano se fez anunciar.

203

Barnabé e o companheiro deixaram os serviços en tregues a João Marcos e

foram atender.

— O Procônsul Sérgio Paulo — disse o mensageiro, solene — manda

convidar-vos a visitá-lo em palácio.

A mensagem era muito mais uma ordem que sim ples convite.
O discípulo

de Simão compreendeu de pronto e respondeu:

— Agradecemos de coração e iremos ainda hoje.

O ex-rabino estava confuso.
Não só o conteúdo político do fato surpreendia –

o, sobremaneira.
Em vão, procurava recordar -se de alguma coisa.
Sérgio

Paulo? Não conheceria alguém com esse nome? Buscou relem brar os jovens

de origem romana, do seu conhecimento.
Afinal, veio -lhe à memória a palestra

de Pedro sobre a personalidade de Estevão e concluiu que o Procônsul não

podia ser outro senão o salvador do irmão de Abigail.

Sem comunicar as íntimas impressões a Barnabé, examinou a situação em

sua companhia.
Quais os objetivos da delicada íntimação? Segundo a voz

pública, o chefe político vinha sofrendo pertinaz enfermidade.
De sejaria curarse

ou, quem sabe, provocar um meio de expulsá -los da ilha, induzido pelos

judeus? A situação, entretanto, não se resolveria por conjeturas.

Incumbindo João Marcos de atender a quantos se interessassem pela

doutrina, no referente a informes necessários, os dois amigos puseram-se a

caminho, resolutamente.

Conduzidos através de galerias extensas, foram dar com um homem

relativamente moço, deitado em largo divã e deixando perceber extremo

abatimento.
Magro, pálido, revelando singular desencanto da vida, o Procônsul

entremostrava, todavia, uma bondade imensa na suave irradiação do olhar

humilde e melancólico.

Recebeu os missionários com muita simpatia, apre sentando-lhes um mago

judeu de nome Barjesus, que de longa data o vinha tratando.
Sérgio Paulo,

prudentemente, mandou que os guardas e servos se retirassem.
Apenas os

quatro se viram a sós, em círculo muito íntimo, falou o enfermo com amarga

serenidade:

— Senhores, diversos amigos me deram notícia dos vossos êxitos nesta

cidade de Nea-Pafos.
Tendes curado moléstias perig osas, devolvido a fé a

inúmeros descrentes, consolado míseros sofredores.
.
.
Há mais de um ano

venho cuidando de minha saúde arruinada.
Nestas con dições, estou quase

inutilizado para a vida pública.

Apontando Barjesus que, por sua vez, fixava o olhar malic ioso nos

visitantes, o chefe romano pros seguiu:

— Há muito contratei os serviços deste vosso con terrâneo, ansioso e

confiante na ciência de nossa época, mas os resultados têm sido

insignificantes.
Mandei chamar-vos, desejoso de experimentar os vossos

conhecimentos.
Não estranheis minha atitude.
Se pudesse, teria ido procurar –

vos em pessoa, pois conheço o limite de minhas prerrogativas; como vedes,

porém, sou antes de tudo um necessitado.

Saulo ouviu aquelas declarações, profundamente co movido pela bondade

natural do ilustre enfermo.
Bar nabé estava atônito, sem saber o que dizer.
O

ex-doutor da Lei, entretanto, senhor da situação e quase certo de que a

personagem era a mesma que figurava na exis tência do mártir vitorioso, tomou

a palavra e disse convictamente:

— Nobre Procônsul, temos conosco, de fato, o poder de um grande

204

médico.
Podemos curar, quando os enfer mos estejam dispostos a

compreendê-lo e segui-lo.

— Mas quem é ele? — perguntou o enfermo.

— Chama-se Cristo Jesus.
Sua fórmula é sagrada — continuava o tecelão,

com ênfase — e destina-se a medicar, antes de tudo, a causa de todos os

males.
Como sabemos, todos os corpos da Terra terão de morrer.
Assim, por

força de leis naturais inelutàveis, jamais teremos, neste mundo, absoluta saúde

física.
Nosso organismo sofre a ação de todos os processos ambientes.
O calor

incomoda, o frio nos faz tremer, a alimentação nos modifica, os atos da vida

determinam a mudança dos hábitos.
Mas o Salvador nos ensina a procurar

uma saúde mais real e preciosa, que é a d o espírito.
Possuindo-a, teremos

transformado as causas de preocupação de nossa vida, e habilitamo -nos a

gozar a relativa saúde física que o mundo pode oferecer nas suas expressões

transitórias.

Enquanto Barjesus, irônico e sorridente, escutava o Intróito , Sérgio Paulo

acompanhava a palavra do ex -rabino, atento e comovido:

— Contudo, como encontrar esse médico? — perguntou o Procônsul, mais

preocupado com a cura do que com o elevado sentido metafísico das

observações ouvidas.

— Ele é a bondade perfeita — esclareceu Saulo de Tarso — e sua ação

consoladora está em toda parte.
Antes mesmo que o compreendamos, cerca –

nos com a expressão do seu amor infinito!.
.
.

Observando o entusiasmo com que o missionário tarsense falava, o chefe

político de Nea-Pafos buscou a aprovação de Barjesus com olhar indagador.

O mago judeu, evidenciando profundo desprezo, ex clamou:

—Julgávamos que estivésseis aparelhados de algu ma ciência nova.
.
.
Não

quero acreditar no que ouço.
Acaso me supondes um ignorante, relativamente

ao falso profeta de Nazaré? Ousais franquear o palácio de um governador, em

nome de um miserável carpinteiro?

Saulo mediu toda a extensão daquelas ironias, res pondendo sem se

intimidar:

— Amigo, quando eu afivelava a máscara farisaica, também assim

pensava; mas, agora, conheço a gloriosa luz do Mestre, o Filho do Deus

Vivo!.
.
.

Essas palavras eram ditas num tom de convicção tão ardente que o próprio

charlatão israelita se fizera lívido.
Barnabé também empalidecera, enquanto o

nobre patrício observava o ardoroso pr egador com visível interesse.
Depois de

angustiosa expectativa, Sérgio Paulo voltou a dizer:

—Não tenho o direito de duvidar de ninguém, en quanto as provas

concludentes não me levem a fazê -lo.

E procurando fixar a fisionomia de Saulo, que lhe enfrentava o olhar

perquiridor, serenamente continuou:

—Falais desse Cristo Jesus, enchendo -me de assombro.
Alegais que sua

bondade nos assiste antes mesmo de o conhecermos.
Como obter uma prova

concreta de vossa afirmativa?

Se não entendo o Messias de que sois me nsageiros, como saber se sua

assistência me influenciou algum dia?

Saulo lembrou repentinamente as palestras de Simão Pedro, ao lhe narrar

os antecedentes do mártir do Cris tianismo.
Num instante alinhou os mínimos

episódios.
E valendo-se de todas as oportunidades para destacar o amor

205

infinito de Jesus, como aconteceu nos menores fatos da sua carreira

apostólica, sentenciou com singular entono:

—Procônsul, ouvi-me! Para revelar-vos, ou melhor,

a fim de lembrar-vos a misericórdia de Jesus de Nazaré,

o nosso Salvador, chamarei vossa atenção para um acon tecimento importante.

Enquanto Barnabé manifestava profunda surpresa, em face da

desassombrada atitude do companheiro, o político aguçava a curiosidade.

—Não é a primeira vez que experimentais uma gra ve enfermidade.


quase dez anos, ao tentardes os primeiros passos na vida pública,

embarcastes no porto de Cefalônia em demanda desta ilha.
Viajáveis para

Citium, mas, antes que o navio aportasse em Corinto, fostes acometido de

febre terrível, o corpo aberto em feridas venenosas.
.
.

Brancura de cera estampava-se no semblante do chefe de Nea -Pafos.

Colocando a mão no peito, como a conter as pulsações aceleradas do coração,

ergueu-Se extremamente perturbado.

—Como sabeis tudo isso? — murmurou aterrado.

—Não é só — disse o missionário, sereno —, esperai o resto.
Vários dias

permanecestes entre a vida e a morte.
Debalde os médicos de bordo

comentaram vossa enfermidade.
Vossos amigos fugiram.
Quando fi castes de

todo abandonado, não obstante o prestígio polít ico do vosso cargo, o Messias

Nazareno vos mandou alguém, no silêncio de sua misericórdia divina.

O Procônsul, com o despertar das velhas reminis cências, sentia-se

profundamente comovido.

— Quem teria sido o mensageiro do Salvador? —prosseguia Saulo,

enquanto Barnabé o contemplava com inaudito assombro.
— Um de vossos

íntimos? Um amigo eminente? Um dos colegas ilustres que presenciavam

vossas dores? Não! Apenas um escravo humilde, um serviçal anônimo dos

remos homicidas.
Jeziel velou por vós, dia e noite! E o que a Ciência do mundo

não conseguiu fazer, fê-lo o coração empossado pelo amor do Cristo!

Compreendeis agora? Vosso amigo Barjesus fala de um carpinteiro sem –

nomes de um Messias que preferiu a condição da humildade suprema para nos

trazer as torrentes preciosas de suas graças!.
.
.

Sim, Jesus também, como aquele escravo que vos restabeleceu a saúde

perdida, fez-se servo do homem para conduzi -lo a uma vida melhor!.
.
.
Quando

todos nos abandonam, Ele está conosco; quando os amigos fogem, sua

bondade mais se aproxima.
Para forrarmo-nos das míseras contingéncias

desta vida mortal, é preciso crer nele e segui -lo sem descanso!.
.
.

Ante as lágrimas convulsivas do Procônsul, Barnabé, aturdido,

considerava: Onde fora o companheiro colher tão profundas revelações ? A seu

ver, naquele instante, Saulo de Tarso estaria iluminado pelo dom maravilhoso

das profecias.

— Senhores, tudo isso é a verdade pura! Trouxes tes-me a santa notícia de

um Salvador!.
.
.
— exclamou Sérgio Paulo.

Reconhecendo a capitulação do generoso pa trício que lhe recheava a

bolsa de fartos recursos, o mago israelita, apesar de muito surpreso, exclamou

com energia:

— Mentira!.
.
.
São mentirosos! Tudo isso é obra de Satanás! Estes homens

são portadores de sortilégios infames do “Caminho”! Abaixo a explo ração vil!.
.
.

A boca lhe espumava, os olhos rebrilhavam de có lera.
Saulo mantinha-se

calmo, impassível, quase sorridente.
Depois, timbrando forte:

206

—Acalmai-vos, amigo! A fúria não é amiga da verdade e quase sempre

esconde inconfessáveis interes ses.
Acusai-nos de mentirosos, mas nossas

palavras não se desviaram uma linha da realidade dos acontecimen tos.
Alegais

que nosso esforço procede de Satanás, no entanto, onde já se viu maior

incoerência? Onde encontraríamos um adversário trabalhando contra si

mesmo? Afirmais que somos portadores de sortilégios; se o amor constitui

esse talismã, nós o trazemos no coração, ansiosos por comunicar a todos os

seres sua benéfica influência.
Finalmente, lançais a nós outros a pecha de

exploradores sagazes, quando aqui vi emos chamados por alguém que nos

honrou com sinceridade e confiança e, de modo algum, poderíamos oferecer

as graças do Salvador a título mercatório.

Seguiu-se acalorada discussão: Barjesus fazia empenho em demonstrar a

inferioridade dos intuitos de Saulo , enquanto este se esforçava em timbrar

nobreza e e cordialidade.

Embalde o Procônsul tentava dissuadir o judeu de continuar na requesta e

naquele diapasão.
Barnabé, por sua vez, confiando muito mais nos poderes

espirituais do amigo, acompanhava o discrime sem ocultar admiração pelos

infinitos recursos que o missionário tarsense estava revelando.

A polêmica já durava mais de hora, quando o mago fez uma alusão mais

ferina à personalidade e feitos de Jesus -Cristo.

Em atitude mais enérgica, o Apóstolo sentenc iou:

— Tudo fiz por convencer-vos sem demonstrações mais diretas, de

maneira a não ferir a parte respeitável de vossas convicções; todavia, estais

cego e é nessa condição que podereis enxergar a luz.
Como vós, também já

vivi em trevas e, no instante do me u encontro pessoal com o Messias, foi

necessário que as trevas se aden sassem em meu espírito, a fim de que a luz

ressurgisse mais brilhante.
Tereis igualmente esse benefício.
A visão do corpo

fechar-se-vos-á, para que possais divisar a ver dade em espírito!.

Nesse comenos, Barjesus deu um grito.

— Estou cego!

Estabeleceu-se alguma confusão no recinto.
Barnabé adiantou -se,

amparando o israelita que tateava aflito.
O tecelão e o governador

aproximaram-se surpreendidos.
Foram chamados alguns servos que

atenderam as necessidades do momento, carinhosos e solícitos.
Por quatro

longas horas, Barjesus chorou, mergulhado na sombra espessa que lhe

invadira os olhos cansados.
Ao fim desse tempo, os missionários oraram de

joelhos.
.
.
Branda serenidade estabeleceu-se no vasto aposento.
Em seguida,

Saulo impôs-lhe as mãos na fronte e, com um suspiro de alívio, o velho israelita

recobrou a vista, retirando-se confuso e sucumbido.

O Procônsul, porém, vivamente interessado nos fatos intensos daquele

dia, chamou os missionários em particular e falou sensibilizado:

—Amigos, creio nas verdades divinas que anun ciais e desejo

sinceramente compartilhar do Reino espe rado.
Nada obstante, conviria inteirar –

me dos vossos objetivos de trabalho, dos vossos planos enfim.
Estou ciente de

que não mercadejais os dons espirituais de que sois portadores, e proponho –

me auxiliar-vos com os meus préstimos em tudo que me for possível.

Poderia saber os projetos que vos animam?

Os dois missionários entreolharam-se, surpresos.
Barnabé ainda não havia

saído do espanto que o companhei ro lhe causara.
Saulo, por sua vez, mal

dissimulava o próprio assombro pelo auxílio espiritual que obtivera no afã de

207

confundir os maliciosos intuitos de Barjesus.

Reconhecendo, contudo, o elevado e sincero inte resse do chefe político da

província, esclareceu com jubi losos conceitos:

—O Salvador fundou a religião do amor e da ver dade, instituição invisível e

universal, onde se acolham todos os homens de boa -vontade.
Nosso fim é dar

feição visível à obra divina, est abelecendo templos que se irma nem nos

mesmos princípios, em seu nome.

Avaliamos a delicadeza de semelhante tentame e estamos crentes de que

as maiores dificuldades vão surgir em nosso caminho.
Ë quase impossível

encontrar o cabedal humano indis pensável ao cometimento; mas é forçoso

movimentar o plano.
Quando falhem os elementos da instituição visível,

esperaremos na igreja infinita, onde, nas luzes da univer salidade, Jesus será o

chefe supremo de todas as forças que se consagrem ao bem.

—Trata-se de sublime iniciativa — aparteou o Procônsul evidenciando

nobre interesse.

— Onde encetastes a construção dos santuários?

— Nossa missão está começando precisamente agora.
Os discípulos do

Messias fundaram as igrejas de Jeru salém e Antioquia.
Por enquanto, não

temos outros núcleos educativos, além desses.
Há muitos cristãos em toda

parte, mas suas reuniões se fazem em domicílios particulares.
Não possuem

templos, propriamente, que os habilitem a mais eficiente esforço de assistência

e propaganda.

— Nea-Pafos terá, então, a primeira igreja, filha do vosso trabalho direto.

Saulo não sabia como traduzir sua gratidão por aquele gesto de

generosidade espontânea.
Profundamente comovido, adiantou -se, então, e,

com o cidadão cíprio, agradeceu a dádiva que vinha prestigi ar e facilitar a obra

apostolar.

Os três falaram ainda largo tempo sobre os em preendimentos em

perspectiva.
Sérgio Paulo pediu-lhes indicassem as pessoas capazes de

construir o novo templo, enquanto Barnabé e o companheiro expunham suas

eSperançaS.

Somente à noite os missionários puderam voltar àtenda humilde das

pregações.

—Estou impressionado! — dizia Barnabé, recordando o ocorrido.
— Que

fizeste? Tenho para mim que hoje é o dia maior da tua existência.
Tua palavra

tinha um timbre sagrado e diferente; anima-te, agora, o dom das profecias.
.
.

Além disso, o Mestre agraciou-te com o poder de dominar as idéias malignas.

Viste como o charlatão sentiu a influência de energias poderosas quan do

fizeste o teu apelo?

Saulo ouviu atento e com a maior simplicidade acentuou:

—Também não sei como traduzir meu espanto pelas graças obtidas.
Foi

pelo Cristo que nos tornamos instrumentos da conversão do Procônsul, pois a

verdade é que de nós mesmos nada valemos.

— Nunca esquecerei os acontecimentos de hoje —tornou o ex-levita,

admirado.

E depois de uma pausa:

— Saulo, quando Ananias te batizou não chegou a sugerir a mudança do

teu nome?

— Não me lembrei disso.

—Pois suponho que, doravante, deves considerar tua vida como nova.
Foste

208

iluminado pela graça do Mestre, tives te o teu Pentecostes, foste sagrado Após –

tolo para os labores divinos da redenção.

O ex-doutor da Lei não dissimulou a própria admi ração e concluiu:

—É muito significativo para mim que um chefe político seja atraído para

Jesus, por nosso intermédio, mesmo porque, nossa tarefa conclama os gentios

ao Sol divino do Evangelho de salvação.

Intimamente, recordou os laços sublimes que o liga vam à memória de

Estevão, a generosa influência do patrício romano que o libertara dos trabalhos

duros da escravidão e, invocando a memória do mártir, num apelo silencioso,

falou comovido:

—Sei, Barnabé, que muitos dos nossos companhei ros trocaram de nome

quando se converteram ao amor de Jesus; quiseram assinalar desse modo sua

separação dos enganos fatais do mundo.
Não qui s valer-me do recurso, de

qualquer modo.
Mas a transformação do governador, a luz da graça que nos

acompanhou no curso dos acontecimentos de hoje, levam -me, igualmente, a

procurar um motivo de perenes lembranças.

Depois de longa pausa, dando a entender qua nto refletira para tomar

aquela resolução, falou:

—Razões íntimas, absolutamente respeitáveis, obri gam-me a reconhecer,

doravante, um benfeitor no chefe político desta ilha.
Sem trocar formalmente

meu nome passarei a assinar -me à romana.

—Muito bem — respondeu o companheiro —, entre Saulo e Paulo

nenhuma diferença existe, a não ser a do hábito de grafia ou de pronúncia.
A

decisão será uma formosa homenagem ao nosso primeiro triunfo mis sionário

junto dos gentios, ao mesmo tempo que consti tuirá agradável lembrança de um

espírito tão generoso.

Nesse fato baseou-se a mudança de uma letra no nome do ex -discípulo de

Gamaliel.

Caráter íntegro e enérgico, o rabino de Jerusalém, nem mesmo transfor –

mado em modesto tecelão, quis modificar, portas a d entro do Cristianismo, a

sua fidelidade inata.
Se servira a Moisés como Saulo, com o mesmo nome

haveria de servir igualmente a Jesus -Cristo.
Se errara e fora perverso, na

primeira condição, aproveitaria a oportunidade dos Céus, corrigiria a existência

e seria um homem bom e justo na segunda.
Nesse particular, não chegou a

considerar qualquer sugestão dos amigos.
Fora o primeiro perseguidor da

instituição cristã, verdugo inflexível do proselitismo alvorecente, mas fazia

questão de continuar como Saulo, para lembrar-se de todo o mal e envidar

esforços para fazer todo o bem ao seu alcance.
Mas, naquele instante, a

lembrança de Estevão falava-lhe brandamente ao coração.
Ele fora o seu

maior exemplo para a marcha espiritual.
Era o Jeziel bem -amado de Abigail.

Para procurá-lo, ambos se haviam prometido ir, sem vacilações, fosse aonde

fosse.
Os dois irmãos de Corinto estavam vivos, de tal modo, em sua alma sen –

sível, que não era possível apagar na memória os míni mos fatos de sua vida.
A

mão de Jesus o encaminhara ao Procônsul, o libertador de Jeziel dos grilhões

do cativeiro; o ex-escravo demandara Jerusalém para tor nar-se discípulo do

Cristo! O ex-rabino sentia-se ditoso, por ter sido auxiliado pelas forças divinas,

tornando-se por sua vez libertador de Sérgio Pa ulo, escravizado ao sofrimento

e às ilusões perigosas do mundo.
Era justo gravar na memória uma lembrança

indelével daquele que, vítima dele em Jerusalém, era agora irmão abençoado,

o qual não conseguia esquecer nos mais fugazes instantes da vida e do seu

209

ministério.

Daí por diante o convertido de Damasco, em me mória do inolvidável

pregador do Evangelho, que su cumbira a pedradas, passou a assinar -se Paulo,

até ao fim de seus dias.

A notícia da cura e da conversão do Procônsul encheu Nea -Pafos de

grande assombro.

Os missionários não mais tiveram descanso.
Embora o protesto quase

apagado dos israelitas, a comunidade cresceu extraordi nariamente.
Integrado

nos bens da saude, o chefe pro vincial forneceu o necessário à construção da

igreja.
O movimento era ext raordinário.
E os dois mensageiros do Evangelho

não cessavam de render graças a Deus.

O triunfo cercava-os de profunda consideração, quan do Paulo foi procurado

por Barjesus que lhe solicitava uma palavra confidencial.
O ex -rabino não

hesitou.
Era uma boa ocasião para provar ao velho israelita os seus propósitos

generosos e sinceros.
Recebeu-o, pois, com toda a afabilidade.

Barjesus parecia tomado de grande acanhamento.
Após cumprimentar o

missionário, atencioso, exprimiu-se com certo embaraço:

—Afinal, precisava desfazer o mal-entendido, no caso do Procônsul.

Ninguém, mais do que eu, desejava tanto a saúde do enfermo, e, por

conseguinte, ninguém mais agradecido à vossa intervenção, libertando -o de

enfermidade tão dolorosa.

—Sou muito grato ao vosso parec er e regozijo-me com a vossa

compreensão — disse Paulo, com gentileza.

—Entretanto.
.
.

O visitante vacilava se devia ou não expor seus objetivos mais íntimos.

Atento às reticências sem pre sumir-lhes a causa, o ex-rabino adiantou-se

benévolo.

—Que desejais dizer? Com franqueza.
Nada de ce rimônias!

—Acontece — retrucou mais animado — que venho afagando a idéia de

consultar-vos a respeito dos vossos dons espirituais.
Penso que não haverá

maior tesouro para triunfar na vida.
.
.

Paulo estava confundido, sem s aber que rumo tomaria a conversação.

Mas, focando o ponto mais delicado da pretensão, Barjesus continuou:

—Quanto ganhais no vosso ministério?

—Ganho a misericórdia de Deus — disse o missionário, compreendendo,

então, todo o alcance daquela vi sita inesperada —, vivo do meu trabalho de

tecelagem e não seria lícito mercadejar com o que pertence ao Pai que está

nos céus.

– É quase incrível! murmurou o mago arrega lando os olhos.
— Eu estava

convicto de – que trazíeis convosco certos talismãs, que m e dispunha a

comprar por qualquer preço.

E enquanto o ex-rabino o contemplava cheio de comiseração pela sua

ignorância, o visitante prosseguiu:

– Mas, será crível que façais semelhantes obras sem contribuição de

sortilégios?

O missionário fixou-o mais atento e murmurou:

—Só conheço um sortilégio eficiente.

—Qual é? — interrogou o mago de olhar faiscante e cobiçoso.

—É o da fé em Deus com sacrifício de nós mesmos.

O velho israelita demonstrou não entender toda a significação daquelas

210

palavras, objetando:

—Sim, mas a vida tem suas necessidades urgentes.
É indispensável

prever e amealhar recursos.

Paulo pensou um minuto e disse:

—De mim mesmo, nada tenho com que vos escla recer.
Mas Deus tem

sempre uma resposta para nossas preocupações mais simples.
Consu ltemos

suas eternas verdades.

Vejamos qual a mensagem destinada ao vosso coração.

Ia abrir o Evangelho, conforme seu costume, quan do o visitante observou:

—Nada conheço desse livro.
Para mim, portanto, não poderá trazer

advertência alguma.

O missionário compreendeu a relutância e acentuou:

—Que conheceis então?

—Moisés e os Profetas.

Tomou do rolo de pergaminhos onde se podia ler a Lei Mitiga e o deu ao

velho malicioso, para que o abrisse em alguma sentença, ao acaso, segundo

os hábitos da época.
No ent anto Barjesus, com evidente má -vontade,

acrescentou:

—Só leio os Profetas, de joelhos.

—Podeis ler como quiserdes, porque o ato de com preender é o que nos

interessa, antes de tudo.

Assinalando suas presunções farisaicas, o charlatão ajoelhou -se e abriu

solenemente o texto, sob o olhar se reno e perquiridor do ex-rabino.
O velho

israelita fez-se pálido.
Esboçou um gesto para se abstrair da leitura; mas Paulo

percebeu o movimento sutil e, aproximando -se, falou com alguma veemência:

—Leiamos a mensagem permanente dos emissários de Deus.

Tratava-se de um fragmento dos Provérbios, que Barjesus pronunciou em

voz alta, com enorme desapontamento:

“Duas coisas te pedi; não mas negues, antes que eu morra.
Afasta de

mim as vaidades e as mentiras.
Não me dês a pob reza, nem a riqueza.

Concede-me apenas o alimento de que necessito, para não acontecer

que, estando farto, eu te negue e pergunte: – Quem é Jeová? — ou que,

estando pobre, me ponha a furtar e profane o nome de meu Deus.
” (1)

O mago levantou-se atarantado, O próprio missionário estava surpreso.

— Vistes, amigo? — interrogou Paulo — a palavra da verdade é muito

eloqüente.
Será grande talismã, na existência, o sabermos viver com os nossos

próprios recursos, sem exorbitar do necessário ao nosso enrique cimento

espiritual.

— Efetivamente — respondeu o charlatão — este processo de consultas é

muito interessante.
Vou meditar seriamente na experiência de hoje.

Logo em seguida se despedia, depois de mastigar alguns monossílabos

que mal disfarçavam a perturbação que todo o empolgara.

Impressionado, o tecelão consagrado ao Cristo ano tou as profundas

exortações, para consolidar o seu pro grama de atividades espirituais, isento de

interesses inferiores.

A missão permaneceu em Nea-Pafos ainda alguns dias, sobrecarregad a de

muito trabalho.
João Marcos colaborava com os recursos ao seu alcance;

todavia, de vez em quando, Barnabé surpreendia -o entristecido e queixoso.

211

Não esperava encontrar tão vultosa cota de trabalho.

(1) Provérbios, capítulo 30º, versículos de 7 a 9

– Mas, assim é melhor — acentuava Paulo —‘ o serviço do bem é a

muralha defensiva das tentações.

O rapaz conformava-se; contudo, sua contrariedade era evidente.

Além disso, fiel observador do judaísmo, não obstan te a paixão pelo

Evangelho, o filho de Maria Marcos sentia grandes escrúpulos, com a largueza

de vistas do tio e do missionário, relativamente aos gentios.
Desejava servir a

Jesus, sim, de todo o coração, mas não podia distanciar o Mestre das tradições

do berço.

Enquanto as sementes lançadas em Chipre começavam a germinar na

terra dos corações, os trabalhadores do Messias abandonavam Nea -Pafos,

absorvidos em vastas esperanças.

Depois de muito confabularem, Paulo e Barnabé re solveram estender a

missão aos povos da Panfília, com grande escând alo para João Marcos, que

se admirava de semelhante alvitre.

— Mas que fazermos com essa gente tão estranha?

— Perguntou o rapaz contrariado.
— Sabemos, em Jerusalém, que esse

país é povoado por criaturas supinamente ignorantes.
E, ao demais, que a li

existem ladrões por toda parte.

— No entanto — obtemperou Paulo, convicto —, penso que devemos

procurar a região, justamente por isso.
Para outros, uma viagem a Alexandria

pode oferecer maior interesse; mas todos esses grandes centros estão cheios

de mestres da palavra.
Possuem sinagogas importantes, conhecimentos

elevados, grandes expoentes de ciência e riqueza.
Se não servem a Deus é

por má-vontade ou endurecimento de coração.
A Panfília, ao contrário, é muito

pobre, rudimentar e carecente de luz espi ritual.
Antes de ensinar em

Jerusalém, o Mestre preferiu manifestar -se em Cafarnaum e noutras aldeias

quase anônimas, da Galiléia.

Ante o argumento irretorquível, João absteve -se de insistir.

Dentro de poucos dias, singela embarcação deixa va-os em Atália, onde

Paulo e Barnabé encontraram sin gular encanto nas paisagens que

circundavam o Cestro.

Nessa localidade muito pobre, pregaram a Boa Nova ao ar livre, com êxito

imenso.

Observando no companheiro um traço superior, Barnabé como que

entregara a chefia do movimento ao ex-rabino, cuja palavra, então, sabia

despertar encantadores arrebatamentos, O povo simples acolheu a pregação

de Paulo, com profundo interesse.
Ele falava de Jesus, como de um príncipe

celestial, que visitara o mundo e fora esperar os súdi tos amados na esfera da

glorificação espiritual.
Via-se a atenção que os habitantes de Atália

dispensaram ao assunto.
Alguns pediram cópias das lições do Evangelho,

outros procuravam obsequiar os mensageiros do Mestre com o que possuíam

de melhor.
Muito comovidos, recebiam as carinhosas dádivas dos novos

amigos, que, quase sempre, se constituíam em pratos de pão, laranjas ou

peixe.

A permanência na localidade trouxera novos pro blemas.
Era indispensável

alguma atividade culinária.
Barnabé, delicadamente, d esignou o sobrinho para

212

o mister, mas o rapaz não conseguia disfarçar a contrariedade.
Notando -lhe o

constrangimento, Paulo adiantou-se, pressuroso:

— Não nos impressionemos com os problemas na turais.
Procuremos

restringir, doravante, as necessida des e gostos alimentares.
Comeremos

apenas pão, frutas, mel e peixe.

Destarte, o trabalho de cozinha ficará simplificado e reduzido à preparação

dos peixes assados, no que tenho grande prática, desde o meu retiro lá no

Tauro.
Que João não se amofine com o prob lema, pois é justo que essa parte

fique a meu cargo.

Não obstante a atitude generosa de Paulo, o rapaz continuou acabrunhado.

Em breve a missão alugava um barco, largando -se para Perge.
Nesta

cidade, de regular importância para a região em que se localizav a, anunciaram

o Evangelho com imensa dedicação.
Na pequena sinagoga, encheram o

sábado de grande movimento.
Alguns judeus e nume rosos gentios na maioria

gente pobre e simples, acolheram os missionários, cheios de júbilo.
As notícias

do Cristo despertaram singular curiosidade e encantamento.
O modesto

pardieiro, alugado por Barnabé, ficava reple to de criaturas ansiosas por obter

cópia das anotações de Levi.
Paulo regozijava -se.
Experimentava alegria indefinível

ao contacto daqueles corações humildes e si mples, que lhe davam ao

espírito cansado de casuística a doce impressão de virgindade espiritual.

Alguns indagavam da posição de Jesus na hierarquia dos deuses do

paganismo; outros desejavam saber a razão por que haviam crucificado o

Messias, sem consideração aos seus elevados títulos, como Mensageiro do

Eterno.
A região estava cheia de superstições e crendices.
A cultura ju daica

restringia-se ao ambiente fechado das sinagogas.
A missão, não obstante

consagrar seu maior esforço aos israelitas, pregando n o círculo dos que

seguiam a Lei de Moisés, interessara as camadas mais obscuras do povo, em

razão das curas e do convite amoroso ao Evangelho, movimento esse no qual

os trabalhadores de Jesus punham todo o seu empenho.

Plenamente satisfeitos, Paulo e Barn abé resolveram seguir dali mesmo

para Antioquia de Pisídia.
Informado a esse respeito, João Marcos não

conseguiu sopitar os íntimos receios, por mais tempo, e perguntou:

—Supunha que não iríamos além da Panfília.
Como, pois, chegar até

Antioquia? Não temos recursos para atravessar tamanhos precipícios.
As

florestas estão infestadas de bandidos, o rio encachoeirado não faculta o

trânsito de barcas.
E as noites? Como dormir?

Essa viagem não se pode tentar sem animais e servos, coisa que não

temos.

Paulo refletiu um minuto e exclamou:

— Ora, João, quando trabalhamos para alguém, de vemos fazê-lo com

amor.
Julgo que anunciar o Cristo àqueles que não o conhecem, em vista de

suas numerosas dificuldades naturais, representa uma glória para nós.
O

espírito de serviço nunca atira a parte mais difícil para os outros.
O Mestre não

transferiu sua cruz aos companheiros.
Em nosso caso, se tivéssemos muitos

escravos e cavalos, não seriam eles os carregadores das responsabilidades

mais pesadas, no que se refere às ques tões propriamente materiais? O

trabalho de Jesus, entretanto, é tão grande aos nossos olhos que devemos

disputar aos outros qualquer parte de sua execução, em benefício próprio.

O rapaz pareceu mais angustiado.
A energia de Paulo era desconcertante.

—Mas não seria mais prudente — continuou muito pálido — demandarmos

213

Alexandria e organizar pelo menos alguns recursos mais fáceis?

Enquanto Barnabé acompanhava o diálogo com a serenidade que lhe era

peculiar, o ex-rabino continuou:

—Dás demasiada importância aos obstáculos.
Já pensaste nas

dificuldades que o Senhor certamente ven ceu para vir ter conosco? Ainda que

pudesse atravessar livremente os abismos espirituais para chegar ao nosso

círculo de perversidade e ignorância, temos de considerar a muralha de lodo d e

nossas viscerais misérias.
.
.
E tu te espantas apenas com os palmos de

caminho que nos separam da Pisídia?

O jovem calou-se, evidentemente contrariado.
A argumentação era forte

demais, a seus olhos, e não lhe ensejava qualquer nova objeção.

Á noite, Barnabé, visivelmente preocupado, aproximou-se do companheiro,

expondo-lhe as intenções do sobrinho.
O rapaz resolvera regressar a

Jerusalém, de qualquer modo.
Paulo ouviu calmamente as explicações, como

quem não podia opor qualquer embargo à decisão.

—Não poderíamos acompanhá-lo, pelo menos, até algum ponto mais

próximo do destino? — perguntou o ex-levita de Chipre, como tio solícito.

—Destino? — perguntou Paulo admirado.
— Mas já temos o nosso.
Desde

o primeiro entendimento, planejamos a excursão a Antioquia.
Não posso

impedir que faças companhia ao rapaz; por mim, contudo, não devo modificar o

roteiro traçado.
Caso resolvas re gressar, seguirei sozinho.
Julgo que as

empresas de Jesus têm seu momento justo de atuação.
Ë preciso aproveitá -lo.

Se deixarmos a visita à Pisídia para o mês próximo, talvez seja tarde.

Barnabé refletiu alguns minutos, retrucando con victamente:

— Tua observação é incontestável.
Não posso que brar os compromissos.

Além do mais, João está homem e poderá voltar só.
Tem o dinheiro

indispensável a esse fim, em virtude dos cuidados maternos.

—O dinheiro quando não bem aproveitado — rematou Paulo

tranqüilamente — sempre dissolve os laços e as responsabilidades mais

santas.

A conversação terminou, enquanto Barnabé voltava a aconselhar o

sobrinho, altamente impressionado.

Daí a dois dias, antes de tomar a barca que o levaria à foz do Cestro, o filho

de Maria Marcos despedia-se do ex-doutor de Jerusalém com um sorriso

contrafeito.

Paulo abraçou-o sem alegria e falou em tom de se rena advertência:

—Deus te abençoe e te proteja.
Não te esqueças de que a marcha para o

Cristo é feita igualmente por fileiras.
Todos devemos chegar bem; entretanto,

os que se desgarram têm de chegar bem por conta própria.

—Sim — disse o jovem envergonhado —, procurarei trabalhar e servir a

Deus, de toda a minha alma.

—Fazes bem e cumprirás teu dever assim proce dendo — exclamou o exrabino

convicto.

— Lembra sempre que David, enquanto esteve ocupado, foi fiel ao Todo –

Poderoso, mas, quando descansou, entregou -se ao adultério; Salomão,

durante os serviços pesados da construção do Templo, foi puro na fé, mas,

quando chegou ao repouso, foi vencido pela devassidão; Judas começou bem

e foi discípulo direto do Senhor, mas bastou a im pressão da triunfal entrada do

Mestre em Jerusalém para que cedesse à traição e à morte.
Com tantos exem –

plos expostos aos nossos olhos, será útil não venhamos nunca a descansar.

214

O sobrinho de Barnabé partiu, sinceramente tocado por essas palavras,

que o seguiriam, de futuro, como apelo cons tante.

Logo após o incidente, os dois missionários deman daram as estradas

impérvias.
Pela primeira vez, foram obrigados a pernoitar ao relento, no seio da

Natureza.
Vencendo precipícios, encontraram uma gruta rochosa na qual se

ocultaram, para repousar o corpo mortificado e dorido.
O segundo dia da

marcha escoou-se-lhes com a coragem indômita de sempre.
A alimentação

constituía-se de alguns pães trazidos de Perge e frutas silvestres, colhidas ali e

acolá.
Resolutos e bem-humorados, enfrentavam e venciam todos os óbices.

De quando em vez, era indispensável ganhar a outra margem do rio, ao

toparem barreiras intransponíveis.
Ei -los então apalpando o álveo das

torrentes, cautelosos, com longas varas verdes, ou desbravando os caminhos

perigosos e ignorados.

A solidão lhes sugeria belos pensamentos.
Sagrado otimismo extravasava

dos menores conceitos.
Ambos afagavam carinhosas lembranças do passado

afetivo e esperançoso.
Como homens experimentavam todas as necessidades

humanas, mas era profundamente comovedora a f idelidade com que se

entregavam ao Cristo, confiando ao seu amor a realização dos santificados

desejos de uma vida mais alta.

Na segunda noite acomodaram-se em pequena caverna, algo distante do

trilho estreito, logo após os derradeiros tons do crepúsculo .
Depois de

frugalíssima refeição, passaram a comentar animadamente os feitos da igreja

de Jerusalém.
Noite fechada e ainda suas vozes quebravam o grande silêncio.

Desdobrando os assuntos, passaram a falar das excelências do Evangelho,

exaltando a grandeza da missão de Jesus-Cristo.

— Se os homens soubessem.
.
.
— dizia Barnabé fazendo comparações.

— Todos se reuniriam em torno do Senhor e descan sariam — rematava

Paulo cheio de convicção.

— Ele é o Príncipe que reinará sobre todos.

— Ninguém trouxe a este mundo riqueza maior.

— Ah! comentava o discípulo de Simão Pedro — o tesouro de que foi

mensageiro engrandecerá a Terra para sempre.

E assim prosseguiam, valendo-se de preciosas imagens da vida comum

para simbolizar os bens eternos, quando singular moviment o lhes despertou

atenção.
Dois homens armados precipitaram-se sobre ambos, à fraca luz de

uma tocha acesa em resinas.

— A bolsa! — gritou um dos malfeitores.

Barnabé empalideceu ligeiramente, mas Paulo estava sereno e impassível.

—Entreguem o que têm ou morrem — exclamou o outro bandido, alçando

o punhal.

Olhando fixamente o companheiro, o ex -rabino ordenou:

—Dá-lhes o dinheiro que resta, Deus suprirá nos sas necessidades de

outro modo.

Barnabé esvaziou a bolsa que trazia entre as dobras da túnica , enquanto os

malfeitores recolhiam, ávidos, a pequena quantia.

Reparando nos pergaminhos do Evangelho que os missionários

consultavam à luz da tocha improvisada, um dos ladrões interrogou

desconfiado e irônico:

—Que documentos são esses? Faláveis de um p ríncipe opulento.
.
.

Ouvimos referências a um tesouro.
.
.
Que significa tudo isso?

215

Com admirável presença de espírito, Paulo explicou:

—Sim, de fato estes pergaminhos são o roteiro do imenso tesouro que nos

trouxe o Cristo Jesus, que há de reinar sobre os príncipes da Terra.

Um dos bandidos, grandemente interessado, exami nou o rolo das

anotações de Levi.

—Quem encontrar esse tesouro — prosseguia Paulo, resoluto —, nunca

mais sentirá necessidades.

Os ladrões guardaram o Evangelho cuidadosamente.

—Agradecei a Deus não vos tirarmos a vida — disse um deles.

E apagando a tocha bruxuleante, desapareceram na escuridão da noite.

Quando se viram a sós, Barnabé não conseguiu dissimular o assombro.

—E agora? — perguntou com voz trêmula.

—A missão continua bem — glosou Paulo cheio de bom ânimo —, não

contávamos com a excelente opor tunidade de transmitir a Boa Nova aos

ladrões.

O discípulo de Pedro, admirando-se de tamanha serenidade, voltou a

dizer:—

Mas, levaram-nos, também, os derradeiros pães de cevada, bem co mo

as capas.
.
.

— Haverá sempre alguma fruta na estrada — esclarecia Paulo, decidido

— e, quanto às coberturas, não tenhamos maior cuidado, pois não nos faltará o

musgo das árvores.

E, desejoso de tranqüilizar o companheiro, acres centava:

—De fato, não temos mais dinheiro, mas julgo não será difícil conseguir

trabalho com os tapeceiros de Antioquia de Pisídia.
Além disso, a região está

muito distante dos grandes centros e posso levar certas novi dades aos colegas

do ofício.
Esta circunstância será van tajosa para nós.

Depois de tecerem esperanças novas, dormiram ao relento, sonhando com

as alegrias do Reino de Deus.

No dia seguinte, Barnabé continuava preocupado.
Interpelado pelo

companheiro, confessou compungido:

—Estou resignado com a carência absoluta de recursos materiais, mas

não posso esquecer que nos sub trairam também as anotações evangélicas

que possuíamos.
Como recomeçar nossa tarefa? Se temos de cor grande parte

dos ensinamentos, não poderemos conferir todas as expressões.
.
.

Paulo, todavia, fez um gesto significativo e, desa botoando a túnica, retirou

alguma coisa que guardava junto do coração.

—Enganas-te, Barnabé — disse com um sorriso otimista —, tenho aqui o

Evangelho que me recorda a bondade de Gamaliel.
Foi um presente de Simão

Pedro ao meu velho mentor, que, por sua vez, mo deu pouco antes de morrer.

O missionário de Chipre apertou nas mãos o tesouro do Cristo.
O júbilo

voltou a iluminar-lhe o coração.
Poderiam dispensar todo o conforto do mundo,

mas a palavra de Jesus era imprescindível .
Vencendo obstáculos de toda

sorte, chegaram a Antioquia fundamente abatidos.
Paulo, principalmente, a

determinados momentos da noite, sentia-se cansado e febril.
Barnabé tinha

freqüentes acessos de tosse.
O primeiro contacto com a natureza hostil

acarretara aos dois mensageiros do Evangelho fortes desequilíbrios orgânicos.

Não obstante a precária saúde, o tecelão de Tarso procurou informar -se,

logo na manhã da chegada, sobre as tendas de artefatos de couro existentes

na cidade.

216

Antioquia de Pisídia contava grande número de israelitas.
Seu movimento

comercial era mais que regular, As vias públicas ostentavam lojas bem sortidas

e pequenas indústrias variadas.

Confiando na Providência Divina, alugaram um quar to muito simples, e,

enquanto Barnabé repousava da fadiga extrema, Paulo procurou uma das

tendas indicadas por um negociante de frutas.

Um judeu de bom aspecto, cercado de três auxilia res, entre numerosas

prateleiras com sandálias, tapetes e outras utilidades numerosas, atinentes à

sua profissão, dirigia extensa banca de serviço.
Ciente do seu nome, dado o

interesse de sua indagação junto ao comerciante referido, o ex -doutor de

Jerusalém chamou pelo senhor Ibraim, sendo atendido com enorme

curiosidade.

—Amigo — explicou Paulo, sem rodeios —, sou vosso colega de ofício e,

premido por necessidades urgen tes, venho solicitar-vos o imenso obséquio de

admitir-me nas atividades da vossa tenda.
Tenho de fazer longa viagem e, não

possuindo recurso algum, apelo para vossa generosidade, esperando favorável

acolhimento.

O tapeceiro contemplava-o com simpatia, mas, um tanto desconfiado.

Espantava-se e agradava-se, simultaneamente, da sua franqueza e

desembaraço.
Depois de refletir algum tempo, respondeu algo vagamente:

—Nosso trabalho é muito escasso e, para us ar de sinceridade, não

disponho de capital para remunerar a muitos empregados.
Nem todos

compram sandálias; os arreamentos de tropa ficam à espera das caravanas

que somente passam de tempos a tempos; poucos tapetes ven demos, e se

não fossem os tecidos de couro para tendas improvisadas, suponho que não

teríamos o necessário para manter o negócio.
Como vedes, não seria fácil

arranjar-vos trabalho.

— Entretanto — tornou o ex-rabino, comovido com a sinceridade do

interlocutor —, ouso insistir no pedido.
Será t ão-só por alguns dias.
.
.
Além do

mais, ficaria satisfeito em trabalhar a troco de pão e teto, para mim e um

companheiro enfermo.

O bondoso Ibraim sensibilizou-se com aquela confissão.
Depois de uma

pausa longa, em que o tapeceiro de Antioquia ainda hesita va entre o “sim” e o

“não”, Paulo rematou:

— Tão grande é a minha necessidade que insisto convosco, em nome de

Deus.

— Entrai — disse o negociante, vencido pela argumentação.

Embora doente, o emissário do Cristo atirou -se ao trabalho com afã.
Um

velho tear foi instalado apressadamente, junto à banca cheia de facas, martelos

e peças de couro.

Paulo entrou a trabalhar, tendo um olhar amigo e uma boa palavra para

cada companheiro.
Longe de se impor pelos conhecimentos superiores que

possuía, observava o sistema de trabalho dos auxiliares de Ibraim e sugeria

novas providências favoráveis ao serviço, com bondade, sem afetação.

Comovido pelas suas declarações sinceras, o dono da casa mandou a

refeição a Barnabé, enquanto o ex -rabino vencia galhardamente as primeiras

dificuldades, experimentando o júbilo de um grande triunfo.

Naquela noite, junto do companheiro de lutas, ele vou a Jesus a prece do

mais entranhado agradecimento.
Ambos comentaram a nova situação.
Tudo ia

bem, mas era necessário pensar no dinheiro i ndispensável, com que atender

217

ao aluguel do quarto.

Edificado na exemplificação do amigo, agora era Barnabé que procurava

confortá-lo:

— Não importa, Jesus levará em conta a nossa boa -vontade, não nos

deixará ao desamparo.

No dia seguinte, quando Paulo reg ressou da oficina, teve de esperar o

companheiro, com alguma ansiedade.
O mensageiro de Ibraím, que levara a

refeição de Barnabé, não o havia encontrado.
Após alguma inquietação, o ex –

rabino abriu-lhe a porta com inexcedível surpresa.
O discípulo de Pedro parecia

extremamente abatido, mas profunda alegria lhe transbordava do olhar.

Explicou que também ele conseguira trabalho remunerador.
Em pregara-se com

um oleiro necessitado de operários para aproveitar o bom tempo.
Abraçaram –

se comovidos.
Se houvessem a lcançado o domínio do mundo, com a for tuna

fácil, não experimentariam tanto júbilo.
Pequena fração de serviço honesto lhes

bastava ao coração iluminado por Jesus-Cristo.

No primeiro sábado de permanência em Antioquia, os arautos do

Evangelho dirigiram-se à sinagoga local.
Ibraim, satisfeitíssimo com a

cooperação do novo empregado, dera-lhe duas túnicas usadas, que Paulo e

Barnabé envergaram com alegria.

Toda a população “temente a Deus” comprimia -se no recinto.
Sentaram-se

os dois no local reservado aos visitantes ou desconhecidos.
Terminado o

estudo e comentários da Lei e dos Profetas, o diretor dos serviços religiosos

perguntou-lhes, em voz alta, se desejariam dizer algumas palavras aos

presentes.

De pronto, Paulo levantou-se e aceitou o convite.
Dir igiu-se à modesta

tribuna em atitude nobre e começou a discorrer sobre a Lei, tomado de

eloqüência sublime.
O auditório, não afeito a raciocínios tão altos, seguia -lhe a

palavra fluente como se houvera encontrado um profeta autêntico, a espalhar

maravilhas.
Os israelitas não cabiam em si de contentes.
Quem era aquele

homem de quem se poderia orgulhar o próprio Templo de Jeru salém? Em dado

momento, contudo, as palavras do orador passaram a ser quase

incompreensíveis para todos.

Seu verbo sublime anunciava um Messias que já viera ao mundo.
Alguns

judeus aguçaram os ouvidos.
Tratava -se do Cristo Jesus, por intermédio de

quem as criaturas deveriam esperar a graça e a verdade da salvação.
O ex –

doutor observou que numerosas fisionomias mostra vam-se contrariadas, mas a

maioria escutava-o com indefinível vibração de simpatia.
A relação dos feitos

de Jesus, sua exemplificação divina, a morte na cruz, arran cavam lágrimas do

auditório.
O próprio chefe da sinagoga estava profundamente surpreendido.
.
.

Terminada a longa oração, o novo missionário foi abraçado por grande

número de assistentes.
Ibraim, que acabava de conhecê -lo sob novo aspecto,

cumprimentou-o radiante.

Eustáquio, o oleiro que dera trabalho a Bar nabé, aproximou-se para as

saudações, altamente sensibilizado.
Os descontentes, no entanto, não

faltaram.
O êxito de Paulo contrariou o espírito fariseu da assembléia.

No dia imediato, Antioquia de Pisídia estava em polgada pelo assunto.
A

tenda de Ibraim e a olaria de Eustáquio foram locais de grandes discussões e

entendimentos.
Paulo falou, então, das curas que se poderiam fazer em nome

do Mestre.
Uma velha tia do seu patrão foi curada de enfermidade pertinaz,

com a simples imposição das mãos e as preces ao Cristo.
Dois filhinhos do

218

oleiro restabeleceram-se com a intervenção de Barnabé.
Os dois emissários do

Evangelho ganharam logo muito conceito.
A gente simples vinha solicitar -lhes

orações, cópias dos ensinos de Jesus, enquanto muitos enfermos se

restabeleciam.
Se o bem estava crescendo, a animosi dade contra eles também

crescia, da parte dos mais altamente colocados na cidade.
Iniciou -se o

movimento contrário ao Cristo.
Não obstante a continuidade das pregações de

Paulo, aumentava, entre os israelitas pode rosos, a perseguição, o apodo e a

ironia.
Os mensageiros da Boa Nova, entretanto, não desanimaram.
Conforta –

dos pelos mais sinceros, fundaram a igreja na casa de Ibraim.
Quando tudo ia

bem, eis que o ex-rabino, ainda em conseqüência das vicissitudes

experimentadas na travessia dos pântanos da Panfília, cai gravemente

enfermo, preocupando a todos os irmãos.
Durante um mês, esteve sob a

influência maligna de uma febre devoradora.
Barnabé e os novos amigos foram

inexcedíveis em cuidados.

Explorando o incidente, os inimigos do Evangelho puseram -se em campo,

ironizando a situação.
Havia mais de três meses que os dois anunciavam o

novo Reino, reformavam as noções religiosas do povo, curavam as moléstias

mais pertinazes e, por que motivo o poderoso pregador não se curava a si

mesmo? Fervilhavam, assim, os ditos mord azes e os conceitos deprimentes.

Os confrades, entretanto, foram de uma dedicação sem limites.
Paulo foi

tratado com extremos de ternura, no lar de Ibraim, como se houvesse

encontrado um novo lar.

Após a convalescença, o desassombrado tecelão vol tou mais alvissareiro à

pregação das verdades novas.

Observando-lhe a coragem, os elementos judaicos, ralados de despeito,

tramaram sua expulsão sem qual quer condescendência.
Por vários meses o

ex-doutor de Jerusalém lutou contra os golpes do farisaísmo domi nante na

cidade, mantendo-se superior a calúnias e insul tos.
Mas, quando revelava seu

poder de resolução e firmeza de ânimo, eis que os israelitas descontentes

ameaçam Ibraim e Eustáquio com a supressão de regalias e bani mento.
Os

dois antigos habitantes de Antioquia de Pisídia eram acusados como

partidários da revolução e da desor dem.
Altamente comovidos, receberam a

notificação de que somente a retirada de Paulo e Barnabé poderia sal vá-los do

cárcere e da flagelação.

Os missionários de Jesus consideram a penosa situação dos amigos e

resolvem partir.
Ibraim tem os olhos rasos de lágrimas.
Eustáquio não

consegue esconder o abatimento.
Ante as interrogações de Barnabé, o ex -rabino

expõe o plano das atividades futuras.
Demandariam Icônio.
Pregariam ali

as verdades de Deus.
O discípulo de Simão Pedro aprova sem hesitar.

Reunindo os irmãos em noite memorável para quantos lhe viveram as pro –

fundas emoções, os mensageiros da Boa Nova se despe dem.
Por mais de oito

meses haviam ensinado o Evangelho.
Afrontaram zom barias e apodos, haviam

conhecido provações bem amargas.

Seus labores estavam sendo premiados pelo mundo com o banimento,

como se eles fossem criminosos comuns, mas a igreja do Cristo estava

fundada.
Paulo falou nisso, quase com orgulho, não obstante as lá grimas que

lhe rolavam dos olhos.
Os novos discípulos do Mestre não deveriam estranhar

as incompreensões do mundo, mesmo porque, o próprio Salvador não

escapara à cruz da ignomínia, acrescentando que a palavra “cristão” significava

seguidor do Cristo.
Para descobrir e conhecer as sublimidades do Reino de

219

Deus era preciso trabalhar e sofrer sem descanso.

A assembléia afetuosa, por sua vez, acolheu as exor tações, lavada em

lágrimas.

Na manhã imediata, munidos de uma carta de reco mendação de Eustáquio

e carregando vasta provisão de pequeninas lembranças dos companheiros de

fé, puseram-se a caminho, intrépidos e felizes.

O percurso excedente a cem quilômetros foi difícil e doloroso, mas os

pioneiros não se detiveram na con sideração de qualquer obstáculo.

Chegados à cidade, apresentaram-se ao amigo de Eustáquio, de nome

Onesíforo.

Recebidos com generosa hospitalidade, no sábado imediato, antes mesmo

de fixar-se no trabalho profissional, Paulo foi expor os objeti vos de sua

passagem pela região.
A estréia na si nagoga provocou animadas discussões,

O elemento político da cidade constituía -se de judeus ricos e instruídos na Lei

de Moisés; contudo, os gentios representavam, em grande número, a classe

média.
Estes últimos receberam a pala vra de Paulo com profundo interesse,

mas os primeiros desfecharam grande reação logo de início.
Houve tumul tos.

Os orgulhosos filhos de Israel não podiam tolerar um Salvador que se

entregara, sem resistência, à cruz dos ladrões.
A palavra do Apóstolo,

entretanto, alcançara tão grand e favor público que os gentios de Icônio ofere –

ceram-lhe um vasto salão para que lhes fosse ministrado o ensinamento

evangélico, todas as tardes.
Queriam no tícias do novo Messias, interessavamse

pelos seus menores feitos e por suas máximas mais simples.
O ex-rabino

aceitou o encargo, cheio de gratidão e simpatia.
Diaria mente, terminada a

tarefa comum, compacta multidão de iconienses aglomerava -se ansiosa por lhe

ouvir o verbo vibrante.
Dominando a administração, os judeus não tardaram em

reagir, mas foi inútil a tentativa de intimidar o pregador com as mais fortes

ameaças.
Ele continuou pregando intrépida, desassombradamente.
Onesí foro,

a seu turno, dava-lhe mão forte e, dentro em pouco, fundava -se a igreja em sua

própria casa.

Os israelitas mantinham viva a idéia da expulsão dos missionários, quando

um incidente ocorreu em auxílio deles.

É que uma jovem noiva, ouvindo ocasionalmente as pregações do

Apóstolo dos gentios, diariamente penetrava no salão em busca de novos

ensinamentos.
Enlevada com as promessas do Cristo e sentindo extrema

paixão pela figura empolgante do orador, fanatizara -se lamentavelmente,

esquecendo os deveres que a prendiam ao noivo e à ternura maternal.

Tecla, que assim se chamava, não mais atendia aos laços sacrossantos

que deveria honrar no ambiente doméstico.
Abandonou o trabalho diuturno

para esperar o crepúsculo, com ansiedade.
Teóclia, sua mãe, e Tamíris, o

noivo, acompanham o caso com desa gradável surpresa.
Atribuíam a Paulo

semelhante desequilíbrio.
O ex-doutor, por sua vez, estranhava a atitude da

jovem, que, diariamente, insinuava -se com perguntas, olhares e momices

singulares.

Certa vez, quando se dispunha a voltar para casa de Onesíforo, em

companhia de Barnabé, a moça lhe pediu uma palavra em particular.

Ante suas perguntas atenciosas, Tecla corava, ga guejando:

—Eu.
.
.
eu.
.
.

—Dize, filha — murmurou o Apóstolo um tanto preocupado —, deves

considerar-te em presença de um pai.

220

—Senhor — conseguiu dizer ofegante —, não sei por quê, tenho recebido

grande impressão com a vossa palavra.

—O que tenho ensinado — esclareceu Paulo — não é meu; vem de Jesus,

que nos deseja todo o bem.

—De qualquer modo, porém — disse ela com mais timidez —, amo-vos

muito!.
.
.

—Paulo assustou-se.
Não contava com essa decla ração.
A expressão

“amo-vos muito” não era articulada em tom de fraternidade pura, mas com

laivos de particularismo que o Apóstolo percebeu sobremaneira im pressionado.

Depois de meditar muito na situação impre vista, respondeu convicto:

—Filha, os que se amam em espírito, un em-se em Cristo para a eternidade

das emoções mais santas; mas, quem sabe está amando a carne que vai

morrer?

—Tenho necessidade da vossa afeição — exclamou a jovem, de olhar

lacrimoso.

—Sim — esclareceu o ex-rabino —, mas os dois temos necessidade da

afeição do Cristo.
Somente ampa rados nele poderemos experimentar algum

ânimo em nossas fraquezas.

—Não poderei esquecer-vos — soluçou a moça, despertando-lhe

compaixão.

Paulo ficou pensativo.
Recordou a mocidade.
Lem brou os sonhos que

tecera ao lado de Abigail.
Num minuto, seu espírito devassou um mundo de

suaves e angustiosas reminiscências; e como se voltasse de um misterioso

país de sombras, exclamou como se falasse consigo mesmo:

—Sim, o amor é santo, mas a paixão é venenosa.
Moisés recomendou que

amássemos a Deus acima de tudo; e o Mestre acrescentou que nos

amássemos uns aos outros, em todas as circunstâncias da vida.
.
.

E fixando os olhos, agora muito brilhantes, na jovem que chorava,

exclamou quase acrimonioso:

—Não te apaixones por um homem feito de lodo e de pecado, e que se

destina a morrer!.
.
.

Tecla ainda não voltara a si da própria surpresa, quando o noivo desolado

penetrou no recinto deserto.
Tamíris faz as primeiras objeções em grandes

brados, ao passo que o mensageiro da Boa Nova lhe ouve a s reprimendas com

grande serenidade.
A noiva replica mal -humorada.
Reafirma sua simpatia por

Paulo, expõe francamente as intenções mais íntimas, O rapaz escan daliza-se,

O Apóstolo espera pacientemente que o noivo o interrogue.
E, quando

convocado a justificar-se, explica em tom fraternal:

— Amigo, não te acabrunhes nem te exaltes, em face dos sucessos que se

originam de profundas incompreensões.
Tua noiva está simplesmente enferma.

Estamos anunciando o Cristo, mas o Salvador tem os seus inimigos ocultos em

toda parte, como a luz tem por inimiga a treva permanente.
Mas a luz vence a

treva de qualquer natureza.
Iniciamos o labor missionário nesta cidade, sem

grandes obstáculos.
Os judeus nos ridicularizam e, todavia, nada encontraram

em nossos atos que just ifique a perseguição declarada.
Os gentios nos

abraçam com amor.
Nosso esforço desenvolve -se pacificamente e nada nos

induz ao desânimo.
Os adversários invisíveis, da verdade e do bem, certo se

lembraram de influenciar esta pobre criança, para fazê -la instrumento

perturbador de nossa tarefa.
Ë possível que não me compreendas de pronto;

no entanto, a realidade não éoutra.

221

Tamíris, contudo, deixando entrever que padecia da mesma influência

perniciosa, bradou enraivecido:

— Sois um feiticeiro imundo! Esta é qu e é a verdade.
Mistificador do povo

simplório e rude, não passais de reles sedutor de moças impressionáveis.

Insultais uma viúva e um homem honesto, qual sou, insinuando -vos no espírito

frágil de uma órfã de pai.

Espumava de cólera.
Paulo ouviu-lhe as diatribes, com grande presença de

espírito.

Quando o moço cansou de esbravejar, o Apóstolo tomou o manto, fez um

gesto de despedida e acentuou:

— Quando somos sinceros, estamos em repouso invulnerável; mas cada

um aceita a verdade como pode.
Pensa, pois, e en tende como puderes.

E abandonou o recinto para ir ter com Barnabé.

Os parentes de Tecla, porém, não descansaram em face do que

consideravam um ultraje.

Na mesma noite, valendo-se do pretexto, as autoridades judaicas de Icômo

ordenaram a prisão do emissário da Boa Nova.
A fileira dos descontentes afluiu

à porta de Onesíforo, vociferando impropérios.
Apesar da interferência dos

amigos, Paulo foi arrastado ao cárcere, onde sofreu o suplício dos trinta e nove

açoites.
Acusado como sedutor e inimigo das tradiçõe s da família, ao demais

blasfemo e revolucionário, foi indispensável muita dedicação dos confrades

recém-convertidos para restituir-lhe a liberdade.

Depois de cinco dias de prisão com severos castigos, Barnabé o recebeu

exultante de alegria.

O caso de Tecla revestira proporções de grande escândalo, mas o

Apóstolo, na primeira noite de liberdade, reuniu a igreja doméstica, fundada

com Onesíforo, e esclareceu a situação, para conhecimento de todos.

Barnabé considerou impossível ali ficarem por mais tempo.
Novo atrito com

as autoridades poderia prejudi car-lhes a tarefa.
Paulo, entretanto, mostrava -se

bastante resoluto.

Se preciso, voltaria a pregar o Evan gelho na via pública, revelando a

verdade aos gentios, já que os filhos de Israel se comp raziam nos desvios

clamorosos.

Chamado a opinar, Onesíforo ponderou a situação da pobre moça,

transformada em objeto da ironia po pular.
Tecla era noiva e órfã de pai.
Tamíris

havia criado a lenda de que Paulo não passava de poderoso feiticeiro.
Se, na

qualidade de noiva, ela fosse encontrada novamente junto do Apóstolo,

mandava a tradição que fosse condenada à fogueira.

Ciente das superstições regionais, o ex -rabino não hesitou um minuto.

Deixaria Icônio, no dia imediato.
Não que capitulasse diante do inim igo

invisível, mas porque a igreja estava fundada e não era justo cooperar no

martírio moral de uma criança.

A decisão do Apóstolo mereceu aprovação geral.
Assentaram -se as bases

para a continuação do aprendizado evangélico.
Onesiforo e os demais irmãos

assumiram o compromisso de velar pelas sementes recebidas como dádiva

celestial.

No curso das conversações, Barnabé estava pensativo.
Para onde iriam?

Não seria justo pensar na volta? As dificuldades avultavam dia a dia e a saúde

de ambos, desde a internação nas margens do Cestro, era muito inconstante,

O discípulo de Pedro, contudo, conhecendo o ânimo e o espírito de resolução

222

do companheiro, esperou pacientemente que o assunto aflorasse espontânea e

naturalmente.

Em socorro dos seus cuidados, um dos amig os presentes interrogou Paulo

com vivacidade.

— Quando pretendem partir?

— Amanhã — respondeu o Apóstolo.

— Mas, não será melhor repousar alguns dias? Tendes as mãos inchadas

e o rosto ferido pelos açoites.

O ex-doutor sorriu e falou prazenteiro:

O serviço é de Jesus e não nosso.
Se cuidarmos muito de nós mesmos,

nesse capítulo de sofrimentos, não daremos conta do recado; e se

paralisarmos a marcha nos lances difíceis, ficaremos com os tropeços e não

com o Cristo.

Seus argumentos pitorescos e concludentes espalhavam uma atmosfera de

bom-humor.

—Voltareis a Antioquia? — perguntou Onesíforo com atenção.

Barnabé aguçou os ouvidos para conhecer detalha damente a resposta,

enquanto o companheiro retrucava:

—Certo que não: Antioquia já recebeu a Boa Nova da r edenção.
E a

Licaônia?

Olhando agora para o ex-levita de Chipre, como a solicitar a sua

aprovação, acentuava:

—Marcharemos para a frente.
Não estás de acor do, Barnabé? Os povos

da região precisam do Evangelho.
Se estamos tão satisfeitos com as notícias

do Cristo, por que negá-las aos que necessitam do batismo da ver dade e da

nova fé?.
.
.

O companheiro fez um sinal afirmativo e concordou, resignado:

—Sem dúvida.
Iremos para a frente; Jesus nos auxiliará.

E os presentes passaram a comentar a posição de Lis tra, bem como os

costumes interessantes da sua gente simples.
Onesíforo tinha lá uma irmã

viúva, por nome Lóide.
Daria uma carta de recomendação aos missionários.

Seriam hóspedes de sua irmã, durante o tempo que precisassem.

Os dois pregoeiros do Evangelho rejubilaram-se.
Principalmente Barnabé

não cabia em si de contentamento, afastando a idéia triste de ficarem

completamente isolados.

No dia seguinte, sob comovidos adeuses, os missio nários tomavam a

estrada que os conduziria ao novo campo de lutas.

Após viagem penosíssima, chegaram à pequena cida de, num crepúsculo

pardacento.
Estavam exaustos.

A irmã de Onesíforo, no entanto, foi pródiga em gentilezas.
Velha viúva de

um grego abastado, Lóide morava em companhia de sua filha Eunice,

igualmente viúva, e de seu neto Timóteo, cuja inteligência e genero sos

sentimentos de menino constituíam o maior encanto das duas senhoras.
Os

mensageiros da Boa Nova foram recebidos nesse lar com inequívocas provas

de simpatia.
O inexcedível carinho dessa família foi um bál samo confortador

para ambos.
Conforme seu hábito, Paulo referiu -se na primeira oportunidade

ao desejo imenso de trabalhar, durante o tempo de sua permanên cia em Listra,

de modo a não se tornar passível de male dicência ou crítica, mas a dona da

casa opôs-se terminantemente.
Seriam seus hóspedes.

Bastava a recomendação de Onesíforo para que ficassem tranqüilos.
Além

223

disso, explicava: Listra era uma cidade muito pobre, possuia apenas duas

tendas humildes, onde nunca se faziam tapetes.

Paulo estava muito sensibilizado com o acolhimento carinhoso.
Na mesma

noite da chegada, observou a ternura com que Timóteo, tendo pouco mais de

treze anos, tomava os pergaminhos da Lei de Moisés e os Escritos Sagrados

dos Profetas.
Deixou o Apóstolo que as duas senhoras come ntassem as

revelações em companhia do mesmo, até que fosse chamado a intervir.

Quando tal se deu, aproveitou o ensejo para fazer a primeira apresentação do

Cristo ao coração enlevado dos ouvintes.
Tão logo começou a falar, observou a

profunda impressão das duas mulheres, cujos olhos brilha vam enternecidos;

mas o pequeno Timóteo ouvia-o com tais demonstrações de interesse que,

muitas vezes, lhe acariciou a fronte pensativa.

Os parentes de Onesíforo receberam a Boa Nova com júbilos infinitos.
No

dia imediato não se falou de outra coisa.
O rapaz fazia interrogações de toda

espécie.
O Apóstolo, porém, atendia -o com alegria e interesse fraternais.

Durante três dias os missionários entregaram-se a caridoso descanso das

energias físicas.

Paulo aproveitou a ocasião para conversar largamente com Timóteo, junto

do grande curral onde as cabras se recolhiam.

Somente no sábado, procuraram tomar contacto mais íntimo com a

população.
Listra estava cheia das mais estranhas lendas e crendices.
As

famílias judaicas eram muito raras e o povo simplório aceitava como verdades

todos os símbolos mitológicos.
A cidade não possuia sina goga, mas um

pequeno templo consagrado a Júpiter, que os camponeses aceitavam como o

pai absoluto dos deuses do Olimpo.
Havia um culto organizado.
As reuniões

efetuavam-se periodicamente, os sacrifícios eram numerosos.

Numa praça nua movimentava-se.
O mercado parco, pela manhã.

Paulo compreendeu que não encontraria melhor local para o primeiro

contacto direto com o povo.

De cima de uma tribuna improvisada de pedras superpostaS, começou a

pregação em voz forte e comove dora.
Os populares aglomeraram-se de súbito.

Alguns surgiam das casas pacíficas, para verificar o motivo do compacto

ajuntamento.
Ninguém se lembrou das aquisições de carne, de frutas , de

verduras.
Todos queriam ouvir o desconhecido forasteiro.

O Apóstolo falou, primeiramente, das profecias que haviam anunciado a

vinda do Nazareno e, em seguida.
passou a relatar os feitos de Jesus entre os

homens.
Pintou a paisagem da Galiléia com as c ores mais brilhantes do seu

génio descritivo, falou da humildade e da abne gação do Messias.
Quando se

referia às curas prodigiosas que o Cristo realizara, notou que um pequeno

grupo de assistentes lhe dirigiam chufas.
Inflamado de fervor na sua

parenética, Paulo recordou o dia em que vira Estevão curar uma jovem muda,

em nome do Senhor.

Crente de que o Mestre não o desampararia, passeou o olhar pela turba

numerosa.
A distância de alguns metros enxergou um mendigo miserável, que

se arrastava penosamente.
Impressionado com o discurso evan gélico, o

aleijado de Listra aproximou-se.
bracejando no solo e, sentando -se com

dificuldade, fixou os olhos no pre gador que o observava sumamente comovido.

Renovando os valores da sua fé, Paulo contemplou -o com energia e falou

com autoridade:

—Amigo, em nome de Jesus, levanta -te!

224

O mísero, olhos fixos no Apóstolo, levantou -se com fácilidade, enquanto a

multidão dava gritos, surpreen dida.
Alguns recuaram aterrados.
Outros

procuraram o vulto de Paulo e o de Barnabé, conte mplando-os, deslumbrados

e satisfeitos.
O aleijado começou a saltar de alegria.
Conhecido na cidade, de

longa data, a cura prodigiosa não deixava a menor dúvida.

Muitas pessoas se ajoelharam.
Outras correram aos quatro cantos de

Listra para anunciar que o povo havia recebido a visita dos deuses.
A praça

encheu-se em poucos minutos.
Todos queriam ver o mendigo reinte grado nos

seus movimentos livres.
Espalhou-se o sucesso, rapidamente.
Barnabé e Paulo

eram Júpiter e Mercúrio descidos do Olimpo.
Os Apóstolos , jubilosos com a

dádiva de Jesus, mas, profundamente surpreendidos com a atitude dos

licaônios, perceberam logo o mal -entendido.
Em meio do respeito geral, Paulo

subiu de novo à tribuna improvisada, explicando que ele e o com panheiro eram

simples criaturas mortais, realçando a misericórdia do Cristo, que se dignara

ratificar a promessa do Evangelho, naquele minuto inesquecível.
Debal de,

porém, multiplicava os seus esclarecimentos.
Todos lhe ouviam a palavra

genuflexos, em atitude estática.
Foi aí que um velho sacerdote, paramentado

segundo os hábitos da época, surgiu inesperadamente conduzindo dois bois

engrinaldados de flores, com ademanes e mesu ras solenes.
Em voz alta, o

ministro de Júpiter convida o povo ao cerimonial do sacrifício aos deuses vivos.

Paulo percebe o movimento popular e, descendo ao centro da praça, grita

com toda força dos pulmões, abrindo a túnica na altura do peito:

— Não cometais sacrilégios!.
.
.
não somos deu ses.
.
.
Vede!.
.
.
somos simples

criaturas de carne!.

Seguido de perto por Barnabé, arrebata das mãos do velho sacerdote a

delicada trança de couro que prendia os animais, soltando os dois touros

pacíficos, que se puseram a devorar as verdes coroas.

O ministro de Júpiter quis protestar, calando -se em seguida, muito

desapontado.
E entre os mais extrava gantes comentários, os missionários

bateram em retirada, ansiosos por um local de oração, onde pudessem elevar

a Jesus seus votos de alegria e reconhecimento.

— Grande triunfo! — disse Barnabé quase orgulhoso.
— As dádivas do

Cristo foram numerosas, o Senhor lembra -se de nós!.
.
.

Paulo ficou pensativo e redargüiu:

— Quando recebemos muitos favores, precisamos pensar nos muitos

testemunhos.
Penso que experimen taremos grandes provações.
Aliás, não

devemos esquecer que a vitória da entrada do Mestre em Jerusalém precedeu

os suplícios da cruz.

O companheiro, considerando o elevado sentido da quelas afirmações,

entrou a meditar em profundo silêncio.

Lóide e a filha estavam radiantes.
A cura do alei jado conferia aos

mensageiros da Boa Nova singular situação de evidência.
Paulo valeu -se da

oportunidade para fundar o primeiro núcleo do Cristianismo na pe quena cidade.

As providências iniciais foram tomadas na residência da generosa viúva, que

pôs à disposição dos missionários todos os recursos ao seu alcance.

Tal como em Nea-Pafos, estabeleceram num case bre muito humilde a sede

das atividades de informações e de auxílio.
Em lugar de João Marcos, era o

pequeno Timóteo quem auxiliava em todos os misteres.
Numero sas pessoas

copiavam o Evangelho, durante o dia, enquanto os enfermos acorriam de toda

parte, carecidos de imediata assistência.

225

Não obstante tal êxito, crescia igualmente a animo sidade de uns tantos,

contra a nova doutrina.

Os poucos judeus de Listra deliberaram consultar as a utoridades de Icônio,

relativamente aos dois desconhecidos.
E foi isso o bastante para que se

turvassem os horizontes.
Os comissionários regressaram com um acervo de

notícias ingratas.
O caso de Tecla era pintado a cores negras.
Paulo e Barnabé

eram acusados de blasfemos, feiticeiros, ladrões e sedutores de mulheres

honestas.
Paulo, principalmente, era apresentado como revolucionário temível,

O assunto, em Listra, foi dis cutido “intra muros”, Os administradores da cidade

convidaram o sacerdote de Júpiter a entrar na campanha contra os

embusteiros e, com a mesma facilidade com que haviam acreditado na sua

condição de deuses, passaram todos a atribuir aos pregadores as maiores

perversões.
Combinaram-se providências criminosas.
Des de a chegada dos

dois desconhecidos, que falavam em nome de um novo profeta, Listra vivia

sobressaltada por idéias diferentes.
Era preciso coibir os abusos.
A palavra de

Paulo era audaciosa e requeria corretivo eficaz.
Finalmente, deliberaram que o

fogoso pregador fosse apedrejado na primeira ocasião que falasse em público.

Ignorando o que se tramava, o Apóstolo dos gentios, deixando Barnabé

acamado por excesso de trabalho, fez -se acompanhar do pequeno Timóteo, no

sábado imediato, ao entardecer, foi até à praça pública onde, mais u ma vez,

anunciou as verdades e promessas do Evangelho do Reino.

O logradouro apresentava movimento invulgar.
O pregador notou a

presença de muitas fisionomias sus peitas e absolutamente desconhecidas.

Todos lhe acompanhavam os mínimos gestos com evidente curiosidade.

Com a máxima serenidade, subiu à tribuna e come çou a falar das glórias

eternas que o Senhor Jesus havia trazido à Humanidade sofredora.
No

entanto, mal havia iniciado o sermão evangélico, quando, aos gritos furiosos

dos mais exaltados, começaram a chover pedras em barda.

Paulo recordou subitamente a figura inesquecível de Estevão.
Certo, o

Mestre lhe reservara o mesmo gênero de morte, para que se redimisse do mal

infligido ao mártir da igreja de Jerusalém.
Os pequenos e duros granizos

caíam-lhe nos pés, no peito, na fronte.

Sentiu o sangue a escorrer -lhe da cabeça ferida e ajoelhou-se, sem uma

queixa, rogando a Jesus que o fortalecesse no angustioso transe.

Nos primeiros momentos, Timóteo, aterrado, pôs -se a gritar, suplicando

socorro; mas um homem de braços atléticos aproxima -se cauto e murmura-lhe

no ouvido:

—Cala-te se queres ser útil!.
.
.

—És tu, Gaio? — exclamou o pequeno de olhos lacrimosos,

experimentando certo conforto em reconhecer um rosto amigo no pandemônio

em que se via.

—Sim — disse o outro baixinho —, aqui estou para socorrer o Apóstolo.

Não posso esquecer que ele curou minha mãe.

E olhando o movimento da turba criminosa, acres centou:

—Não temos tempo a perder.
Não tardará que o levem ao monturo.
Se tal

se der, procura seguir-nos com um pouco de água.
Se o missionário não

sucumbir, prestarás os primeiros socorros, até que eu consiga pre venir tua

mãe!.
.
.

Separaram-se imediatamente.
Ralado de aflição, o rapaz viu o pregador de

joelhos, olhos fitos no céu, num transporte inesquecí vel.
Filetes de sangue

226

desciam-lhe da fronte fraturada.

Em dado momento, a cabeça pendeu e o corpo tombou desamparado.
A

multidão parecia tomada de assombro.
Prevalecendo -se da situação em que

não se observavam diretrizes prévias, Gaio insinuou -se.
Aproximou-se do

Apóstolo inerme, fez um gesto significativo para o povo e bradou:

—O feiticeiro está morto!.
.
.

Sua figura gigantesca despertara as simpatias da turba inconsciente.

Estrugiram aplausos.

Os que haviam promovido o nefando atentado desapareceram.
Ga io compreendeu

que ninguém ousava assumir a responsabilidade individual.
Em

estranhas vibrações, bradavam os mais perversos:

—Fora das portas.
.
fora das portas!.
.
.
Feiticei ro ao monturo!.
.
.
Feiticeiro ao

montu.
.
.
u.
.
.
ro!.
.
.

O amigo de Paulo, disfarçando a comiseração com gestos de ironia, falou

à multidão satisfeita:

—Levarei os despojos do bruxo!

A turba fez um alarido ensurdecedor e Gaio pro curou arrastar o missionário

com a cautela possível.
Atravessaram vielas extensas, em gritos, até que, atin –

gindo um local deserto, um tanto distante dos muros de Listra, deixaram Paulo

semimorto, na montureira do lixo.

O latagão inclinou-se, como a verificar a morte do apedrejado, e

observando, cuidadosamente, que ainda vivia, gritou:

—Deixemo-lo aos cães, que se incumbirão do resto! Ë preciso celebrar o

feito com algum vinho!.
.
.

E seguindo o líder daquela tarde, a multidão bateu em retirada, enquanto

Timóteo se aproximava do local, valendo -se das sombras da noite que

começava a fechar-se.
Correndo a um poço, não muito distante, e que se

destinava à serventia pública, o pequeno encheu o gorro impermeável, de água

pura, prestando os primeiros socor ros ao ferido.
Banhado em lágrimas, notou

que Paulo respirava com dificuldade, como se houvesse mergulhado em

profundo desmaio, O jovem listrense assentou -se ao seu lado, banhou-lhe a

testa ferida com extremos de carinho.
Mais alguns minutos e o Apóstolo voltava

a si para examinar a situação.

Timóteo o informou de tudo.
Muito compungido, Paulo agradeceu a Deus,

pois reconhecia que somente a misericórdia do Altíssimo poderia ter operado o

milagre, por seqüestrá-lo aos propósitos criminosos da turba inconsciente.

Decorridas duas horas, três vultos silenciosos apro ximavam-se.
Muito aflito,

Barnabé deixara o leito, não obstante o estado febril, para acompanhar Lóide e

Eunice, que, avisadas por Gaio, acorriam com os primeiros socorros.

Todos renderam graças a Jesus, enquanto Paulo tomava pequena dose de

vinho reconfortador.
Organização espiritual poderosa, apesar das sevícias

físicas, o tecelão de Tarso levantou -se e regressou a casa com os amigos,

levemente amparado por Barnabé, que lhe oferecera o braço amigo.

O resto da noite passou-se em conversações carinhosas.
Os dois

emissários da Boa Nova temiam agressão do povo às generosas senhoras que

os haviam hospedado e socorrido.
Era preciso partir, para evitar maiores

incômodos e complicações.

Em vão a palavra de Lóide se fez ouvir, procurando dissuadir os pregoeiros

do Cristo; debalde Timóteo beijou as mãos de Paulo e lhe pediu que não

partisse.
Receosos de mais tristes conseqüências, depois de coordenarem as

227

instruções necessárias à igreja nascente, transpuse ram as portas da cidade ao

amanhecer, em direção a Derbe, que ficava algo distante.

Depois de penosa caminhada, at ingiram o novo setor de trabalho, onde

haveriam de estagiar mais de um ano.
Embora entregues ao trabalho manual,

com que ganhavam o pão da vida, os dois companheiros precisaram de seis

meses para restabelecer a saúde comprometida.
Como tecelão e oleiro

anônimos, Paulo e Barnabé deixaram-se ficar em Derbe longo tempo, sem

despertar a curiosidade pública.
Só depois de refeitos dos abalos sofridos,

recomeçaram a Boa Nova do Reino de Jesus.
Visitando os arredores,

provocaram grande interesse da gente simples, pelo Evangelho da redenção.

Pequenas comunidades cristãs foram fundadas em ambiente de muitas

alegrias.

Após muito tempo de labor, resolveram regressar ao núcleo original do seu

esforço.

Vencendo etapas difíceis, visitaram e encorajaram todos os irmãos

escalonados nas diversas regiões da Licaônia, Pisídia e Panfília.

De Perge desceram a Atália, de onde embarcaram com destino a Selêucia

e dali ganharam Antioquia.

Ambos haviam experimentado a dificuldade dos ser viços mais rudes.
Muita

vez se viram perplexos com os problemas intrincados da empresa: em troca da

dedicação fraternal, haviam recebido remoques, açoites e acusações pérfidas;

contudo, através do abatimento físico e dos gilvazes, irradiavam ondas

invisíveis de intenso júbilo espiritual.
Ë que, entr e os espinhos da estrada

escabrosa, os dois companheiros desassombrados manti nham ereta a cruz

divina e consoladora, espalhando a mancheias as sementes benditas do

Evangelho de Redenção.

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