Livro O que é o Espiritismo – Capítulo I – TERCEIRO DIALOGO – O SACERDOTE – Allan Kardec

TERCEIRO DIALOGO

O SACERDOTE

Objeções em nome da religião

O sacerdote.
— Permita, senhor, que por minha vez lhe dirija algumas perguntas.

Allan Kardec.
— Com muito prazer.
Antes de as responder, entretanto, creio útil apresentar-lhe o terreno em que espero me colocar para lhe dar resposta.

Devo manifestar-lhe que não pretendo absolutamente convertê-lo às nossas ideias.
Se por acaso as desejar conhecer, poderá encontrá-las nos livros em que estão expostas, onde será fácil estudá-las detidamente.
Depois terá a liberdade de as repudiar ou as aceitar.

O Espiritismo tem como finalidade combater a .
incredulidade e suas funestas consequências, provando incontestavelmente a existência da alma e a realidade da vida futura.
Destina-se, pois, aos que não crêem em nada ou que duvidam.
Como sabe, o número destes não é pequeno.
Os que têm fé religiosa e aqueles a quem esta fé satisfaz, dele não precisam.

Ao que diz: Creio na autoridade da Igreja, atenho-me ao que ela ensina e sinto-me satisfeito , o Espiritismo responde que não cuida de impor-se a ninguém e que não veio para forçar convicções.

A liberdade de consciência é uma consequência da liberdade de pensamento.
Este é um atributo do homem.
O Espiritismo estaria em contradição com seus princípios de caridade e de tolerância se não os respeitasse.
Prescreve que toda crença, quando sincera e não induz a ocasionar prejuízos ao próximo, mesmo errónea, é digna de respeito.

Se uma pessoa teima em acreditar, por exemplo, que é o Sol que gira e não a Terra, dir-lhe-emos: Creia se lhe agrada, de vez que isso não opõe obstáculos aos movimentos da Terra.
Mas note que, assim como não procuramos violentar-lhe a consciência, não deve você tentar violentar a consciência alheia.
Cada vez que se transforma uma crença, intimamente inofensiva, em elemento de perseguição, torna-se ela nociva e deve ser combatida .

Tal é, senhor padre, a linha de conduta que tenho observado para com os ministros dos diferentes cultos, que me procuram.
Quando me inquirem sobre pontos da Doutrina, dou-lhes as explicações necessárias; abstendo-me, não obstante, de discutir certos dogmas, do que não se deve ocupar o Espiritismo, já que cada um é livre de os julgar.
Nunca os procurei, porém, com o intuito de lhes destruir a fé pela coação.

Aquele que nos vem como irmão, como irmão o recebemos.
O que nos despreza, em paz o deixamos.
Este é o conselho que não cesso de dar aos espíritas.
Nunca incentivei os que a si atribuem a missão de converter o clero.
Digo-lhes sempre: Semeiem no campo dos incrédulos, que nele há messes abundantes a colher .

O Espiritismo não se impõe porque, como disse, respeita a liberdade de consciência.
Compreende muito bem, por outro lado, que toda fé imposta é superficial e só oferece aparências da fé; nunca é a fé sincera.
Expõe seus princípios aos olhos de toda a gente, de modo que possa cada um formar opinião com conhecimento de causa.

Os que aceitam, leigos ou sacerdotes, fazem-no livremente, porque os julgam racionais.
De nenhuma maneira, porém, abrigamos rancor contra os que não são do nosso parecer.
Se existe uma luta aberta entre a Igreja e o Espiritismo, não fomos nós que a provocamos.
Disso estamos convencidos.

S.
— Assistindo ao advento de uma nova doutrina, cujos princípios, a seu ver, deve condenar, a Igreja tem certamente o direito de os discutir e os combater, de prevenir os fiéis contra o que considera errôneo.

A.
K.
— De nenhum modo negamos um direito que reclamamos para nós mesmos.

Se a Igreja tivesse ficado apenas nos limites da discussão, seria o mais desejável.
Leia, porém, a maior parte dos escritos emanados de seus membros ou publicados em nome da religião, os sermões que têm sido pregados, e verá a injúria e a calúnia brotando de toda parte, assim como os princípios da Doutrina, indigna e maliciosamente desfigurados.

Tem-se ouvido, do alto do púlpito, serem os espíritas inimigos da sociedade e da ordem pública.
Tem-se visto pessoas, que o Espiritismo atraiu à fé, anatematizadas e injuriadas pela Igreja, sob a alegação de que mais vale ser incrédulo do que crer em Deus e na existência da alma por intermédio do Espiritismo.

Para elas, também, já se acenderam as fogueiras da inquisição.

Em muitas localidades não foram elas assinaladas à animadver-são de seus concidadãos, a ponto de serem perseguidas e injuriadas nas ruas?

Já se conjuraram os fiéis a fugirem delas como de empestea-dos; já se induziram os criados a não entrar ao seu serviço.

Por causa do Espiritismo já se aconselharam esposas a abandonar os maridos e maridos a abandonar as esposas.

Já fizeram os empregados perder o emprego, já se tirou aos operários o pão que lhes dá o trabalho e já se negou o pão da caridade aos infelizes, por esta razão: eram espíritas.

Até cegos foram expulsos de hospitais, por se negarem a abjurar a crença.

O senhor me diga: é uma atitude leal?

A tudo opuseram calma e moderação.
A consciência pública já lhes fez a justiça de dizer que não foram eles os agressores.

S.
— Sendo sensato, um homem certamente deplora tais excessos.
A Igreja, porém, não pode responsabilizar-se pêlos abusos cometidos por alguns de seus membros menos educados.

A.
K.
— Sim.
Mas serão, também, pouco educados os príncipes da Igreja? Examine o senhor a pastoral do bispo de Argel e de alguns outros.

Não foi, acaso, um bispo quem decretou o auto de fé de Barcelona?

A autoridade superior eclesiástica não tem poder absoluto sobre seus subordinados?

Se, pois, tolera sermões indignos da cátedra evangélica, se facilita a publicação de artigos injuriosos e difamatórios contra toda uma classe de cidadãos, se não se opõe às perseguições feitas em nome da religião, é porque aprova tudo isso.

Em resumo, rechaçando sistematicamente os espíritas que ainda a ela se prendiam, a Igreja os obrigou a voltarem sobre si mesmos e, pela natureza e violência de seus ataques, dilatou a discussão, atraindo-a para outro terreno.

O Espiritismo era apenas uma doutrina filosófica.
Foi a Igreja que lhe avultou as proporções, apresentando-o como um inimigo terrífico.

Foi ela, enfim, quem o proclamou uma nova religião.
Esse foi um golpe inábil; a paixão não permite o raciocínio.

Um livre pensador: — Há momentos, o senhor proclamou a liberdade de pensamento e de consciência, declarando que crença sincera é respeitável.
O materialismo é uma crença como qualquer outra; por que não gozará da liberdade concedida às outras?

A.
K.
— Sem dúvida, cada um é livre de crer no que quer, ou de não crer em nada.
Não legitimamos a perseguição nem contra o que crê no nada depois da morte, nem contra o cismático de qualquer religião.
Combatendo o materialismo, não atacamos os indivíduos, mas a doutrina que, se inofensiva à sociedade, quando se encerra no foro íntimo, na consciência das pessoas cultas, generalizada, torna-se uma chaga social.

A crença de que tudo acaba para o homem, depois da morte, de que toda a solidariedade cessa com a vida, leva o indivíduo a considerar uma estupidez o sacrifício do bem-estar presente em proveito de outrem.
Daí a máxima: cada um por si durante a vida, pois nada existe depois.

A caridade, a fraternidade, a moral, numa palavra, ficam sem base, perdem a razão de ser.
Por que nos molestarmos, nos reprimirmos, nos privarmos hoje, quando amanhã não mais existiremos? A negação do futuro, a simples dúvida sobre a vida futura, são os maiores estímulos ao egoísmo, manancial da maior parte dos males da humanidade.
Para se deter nos declives do vício e do crime, sem outro freio além da força de vontade, uma pessoa necessita, certamente, de uma maravilhosa virtude.
O respeito humano pode sofrear o homem social, mas não aquele para quem é nulo o temor da opinião pública.

A crença na vida futura, demonstrando a perpetuidade das relações entre os homens, estabelece a solidariedade, que não se finda na tumba e muda o curso das ideias.
Se essa crença fosse um simples espantalho, não teria sobrevivido a uma época.
Como, porém, sua realidade é um fato comprovado pela experiência, torna-se um dever propagá-la e combater a crença contrária, no interesse da ordem social.
Isto faz o Espiritismo, e por sinal que faz com êxito, pois que dá provas e porque, em definitivo, o homem adquire a certeza de poder viver feliz num mundo melhor, em compensação às misérias terrenas.

O pensamento de ver-se destruído para sempre, a crença de perder os filhos e os seres queridos, por toda a eternidade, parece que sorri a bem poucas pessoas.
Disso decorre que os ataques dirigidos contra o Espiritismo, em nome da incredulidade, têm êxito pouco animador; não lhe tem ocasionado o mínimo prejuízo.

S.
— Se a religião ensina tudo isso, se até o presente ela foi suficiente, que necessidade há de uma nova doutrina?

A.
K.
— Se ela tem sido tão suficiente por que, falando de um ponto de vista religioso, há tantos incrédulos?

É certo que a religião nos ensina tudo: também manda que creiamos, mas há um grande número de pessoas que não crêem senão o que se lhes prova.
Uma afirmação, apenas, não lhes basta.
O Espiritismo prova, põe diante dos olhos o que a religião ensina teoricamente.
E essas provas de onde provêm? Da manifestação dos Espíritos.

É provável, pois, que só se manifestem com a permissão de Deus.

E se, em sua misericórdia, Deus envia recurso aos homens, para os afastar da incredulidade, repeli-lo é uma impiedade.

S.
— O senhor não negará, entretanto, que o Espiritismo não está, em todos os pontos, concorde com a religião.

A.
K.
— Mas por Deus, senhor! Todas as religiões podem dizer o mesmo: protestantes, ou judeus, ou muçulmanos, tanto quanto os católicos.

Se o Espiritismo negasse a existência de Deus, da alma, sua individualidade e sua imortalidade, as recompensas e castigos futuros, o livre-arbítrio do homem; se ensinasse que na Terra cada um vive de si para si, e que em sua pessoa unicamente deve pensar, seria contrário não só à religião mas a todas as religiões do mundo.
Seria a negação de todas as leis morais, base das sociedades humanas.
Longe disto, os Espíritos proclamam um Deus único, soberanamente justo e bom; dizem que o homem é livre e responsável por seus atos, recompensado ou castigado segundo o bem ou o mal que houver praticado.
Eles põem acima de todas as virtudes a caridade evangélica e esta regra sublime ensinada pelo Cristo: Fazer ao próximo aquilo que quiséramos fizessem a nós mesmos .
Estes não são os fundamentos da religião? Fazem mais, porém: iniciam-nos nos mistérios da vida futura, que, então, se nos transformam, não mais numa abstração mas numa realidade, pois são as próprias pessoas que conhecêramos antes da morte que vêm, depois, descrever-nos sua situação ou dizer-nos como e porque sofrem ou são ditosas.
Que há nisto de anti-religioso?

Essa certeza de encontrar no futuro aqueles que foram amados, e que a morte arrebatou, não é consoladora? A grandiosidade da vida espiritual, que é sua essência, comparada às mesquinhas preocupações da vida terrestre, não vem a propósito, para elevar nossa alma e estimulá-la ao bem?

S.
— Convenho em que, no que diz respeito às questões em geral, o Espiritismo é conforme às grandes verdades do Cristianismo.
Mas.
.
.
e os dogmas? Sucede o mesmo no que diz respeito aos dogmas? Não vai ele de encontro a certos princípios que a Igreja ensina?

A.
K.
— O Espiritismo é, acima de tudo, urna ciência, e não se ocupa com questões dogmáticas.
Como ciência, e como todas as filosofias, tem consequências morais.
Estas são boas ou más?

Pode-se julgá-lo pêlos princípios gerais que acabo de recordar.

Algumas pessoas se equivocaram quanto ao verdadeiro caráter do Espiritismo.
A questão é suficientemente séria e de molde a merecer uma explicação de nossa parte.

Antes de mais nada, façamos uma comparação: estando na natureza, a eletricidade existiu desde todos os tempos, produzindo os fenómenos que conhecemos e outros que desconhecemos ainda.
Ignorando-lhes a causa verdadeira, os homens explicaram esses fenómenos das mais extravagantes maneiras.

O descobrimento da eletricidade e de suas verdadeiras propriedades, veio destruir um sem número de teorias absurdas, fazendo luz sobre mais de um mistério da natureza.
O que a eletricidade e as ciências físicas, de um modo geral, fizeram para com certos fenómenos, o Espiritismo faz para com fenómenos de outra ordem.

O Espiritismo está, pois, na natureza, e no mundo invisível, formado pêlos seres incorpóreos, que povoam o espaço e que outra coisa não são senão as almas das pessoas que viveram na Terra ou em outros globos, onde deixaram seus envoltórios materiais.
Esses são os seres que designamos pelo nome de Espíritos e que nos rodeiam incessantemente, exercendo sobre os homens, à sua revelia, uma grande influência.
Na parte moral e até certo ponto na física, desempenham um papel importante.

O Espiritismo está, pois, na natureza e, pode dizer-se que, numa certa ordem de ideias, é uma força como a eletricidade e como a gravitação, sob outro ponto de vista.
Os fenómenos, cuja origem está no mundo invisível, deveriam produzir-se, e, com efeito se produziram, em todos os tempos.
Eis a razão porque a história de todos os povos os menciona.
Somente devido à ignorância, como sucedeu com a eletricidade, os homens atribuíram esses fenómenos a causas mais ou menos racionais, dando, sob esse conceito, livre curso a imaginação.

Melhor observado depois de sua divulgação, o Espiritismo faz luz sobre uma multidão de questões até hoje tidas como insolúveis ou mal compreendidas.
Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não de uma religião.
A prova disso é que conta entre seus adeptos homens de todas as crenças e que não renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos, que não deixam de cumprir com os deveres de seu culto (quando não são expulsos pela Igreja), protestantes de todas as seitas, israelitas, muçulmanos e até mesmo budistas e brâmanes.

Baseia-se, pois, em princípios que independem de toda questão dogmática.
Suas consequências morais estão, implicitamente, no Cristianismo, porque de todas as doutrinas o Cristianismo é a mais digna e a mais pura.
Por esta razão, de todas as seitas universais, são os cristãos os mais aptos a compreendê-lo em toda a sua verdadeira essência.
E por isso pode ser censurado? Sem dúvida, cada um pode fazer de suas opiniões uma religião e interpretar a seu gosto as religiões conhecidas; mas daí a constituir uma nova Igreja, vai uma grande distância.

S.
— O senhor faz não obstante, as invocações segundo uma fórmula religiosa.

A.
K.
— Anima-nos, certamente, um sentimento religioso, nas evocações e em nossas reuniões.
Não existe, porém, uma fórmula sacramental.
Para os Espíritos o pensamento é tudo; a forma não vale nada.
Nós os invocamos em nome de Deus, porque cremos em Deus e sabemos que nada se cumpre neste mundo sem a Sua permissão e porque se Deus não lhes permitisse vir, não viriam.

Em nossos trabalhos procedemos com paz e recolhimento, pois esta é uma condição imprescindível à observação dos fenómenos e em segundo lugar porque reconhecemos o respeito que é devido àqueles que já não vivem na Terra, qualquer que seja a condição, feliz ou infeliz, em que se encontrem no mundo dos Espíritos.
Endereçamos um apelo aos bons Espíritos porque, conscientes de que os há bons e maus, procuramos evitar que estes últimos venham se imiscuir, sorrateiramente, nas comunicações que recebemos.

Isto tudo o que prova?

Que não somos ateus, o que de nenhum modo implica em que sejamos religiosos.

S.
— Pois muito bem: o que dizem os Espíritos superiores no tocante à religião? Os bons devem, certamente, aconselhar-nos e guiar-nos.
Por exemplo, se eu não tivesse religião e desejasse escolher uma, perguntar-lhes-ia: que aconselhais que eu seja? Católico, protestante, anglicano, quaker, judeu, maometano ou mórmon.
Que responderiam eles?

A.
K.
— Em todas as religiões há que se considerar dois pontos: os princípios gerais, comuns a todas, e os particulares, de cada uma em separado.
Os primeiros são os que acabamos de mencionar, e esses os proclamam todos os Espíritos, qualquer que seja a ciasse a que pertençam.
Quanto aos outros, os Espíritos vulgares, mas que não são malignos, podem ter preferências, opiniões, podem preconizar esta ou aquela forma e induzir os homens a certas práticas, por convicção pessoal ou por conservarem as ideias da vida terrena, ou ainda por prudência, a fim de não chocarem as consciências timoratas.

O senhor crê que um Espírito ilustrado, o próprio Féneion, por exemplo, dirigindo-se a um muçulmano, seria capaz de afirmar, com falta de tato, que

Maomé é um impostor e que ele, muçulmano, estará condenado, a menos que se torne cristão? Não; não o fará, pois que seria desprezado.

Em geral, e a menos que sejam solicitados por alguma consideração especial, os Espíritos superiores não se ocupam de pormenores e se limitam a dizer: Deus é bom e justo; só almeja o bem.
A melhor, pois, de todas as religiões, é aquela que só ensina o que está conforme à bondade de Deus e Sua Justiça, a que dele oferece a ideia maior, a mais sublime, e não o rebaixa, atribuindo-lhe mesquinhamente a paixões humanas; a que torna os homens bons e virtuo-.
sos e lhes ensina a se amarem uns aos outros, como irmãos; a que condena toda a maldade dirigida ao próximo; a que não autoriza a injustiça sob quaisquer pretextos; a que não prescreve nada contrário as leis imutáveis da natureza, pois Deus não se contradiz; aquela cujos ministros dão o melhor exemplo de bondade, caridade e moralidade; a que mais tende a combater o egoísmo e menos a alimentar o orgulho e a vaidade dos homens; aquela, enfim, em cujo meio menos mal se cometa, pois que uma boa religião não pode ser pretexto de nenhum mal, tão pouco deixar-lhe portas abertas, diretamen-te ou por interpretação.
Veja, julgue e escolha .

S.
— Suponha que determinados pontos da doutrina católica sejam negados pêlos Espíritos que o senhor considera superiores.
Imaginemos que possam ser erróneos.
As pessoas que, com ou sem razão, os tomam por artigos de fé e em consequência neles moldam suas ações, não teriam a salvação prejudicada por essa crença, segundo os Espíritos?

A.
K.
— Não, por certo; ela não as impede de praticar o bem; ao contrário, ao bem as impele, ao passo que a crença mesmo a melhor fundamentada prejudicá-las-á de servir de ocasião para a prática do mal, ao não cumprimento da caridade para com o próximo, se as tornar duras e egoístas; porque então já não estariam obrando segundo a lei de Deus, e Deus olha antes o pensamento que as ações.
Quem ousará sustentar o contrário?

O senhor acredita, por exemplo, que a fé seria proveitosa a um homem que cresce firmemente em Deus, e em Seu nome cometesse atos desumanos ou contrários à caridade? Não será neste caso mais culpado, uma vez que tem os meios de estar esclarecido?

S.
— Assim, o católico fervoroso, que cumpre escrupulosamente com os deveres de seu culto, não cai na censura dos Espíritos?

A.
K.
— Não, se isto for, para ele, uma questão de consciência e se o fizer com sinceridade.
Mil vezes sim, entretanto, se for hipócrita e se sua piedade for apenas aparente.

Os Espíritos superiores, aqueles que têm por missão promover o progresso da humanidade, levantam-se contra todo abuso que possa retardar o progresso.
Igualmente se levantam contra os indivíduos e as classes sociais que se aproveitam desses abusos.
E o senhor não negará que a religião nem sempre dos mesmos tem estado isenta.
Se entre os seus ministros existem os que cumprem sua missão com abnegação cristã, que a tornam grande, bela e respeitável, não pode deixar de convir em que nem todos compreenderam a santidade de seu ministério.

Os Espíritos combatem o mal onde quer se encontre.
E assinalar os abusos da religião equivale a atacá-la?

Não! Ela tem inimigos piores: os que difundem os abusos, pois que estes são os responsáveis pelo desabrochar da ideia de que algo melhor precisa haver para a substituir.
Se algum perigo corresse à religião, seria preciso atribuí-lo aos que dela apresentam uma falsa ideia, transformando-a em arma de paixões humanas e explorando-a em proveito de ambições pessoais.

S.
— O senhor disse que o Espiritismo não discute dogmas e entretanto defende certos conceitos combatidos pela Igreja, como a reencarnação, a presença do homem na Terra antes de Adão; nega a eternidade das penas, a existência do demónio, do purgatório e do fogo do Inferno.

A.
K.
— Há muito tempo essas questões vêm sendo discutidas, e não foi o Espiritismo que as trouxe para o terreno dos debates.
À margem desses problemas há controvérsias na própria teologia.
Mas só o futuro poderá julgar.
Domina-as todas um princípio: a prática do bem, que é uma lei superior, a condição sine qua non de nosso futuro, como o prova a condição em que se acham os Espíritos que conosco se comunicam.
Acredite, se quiser, nas chamas do Inferno e nos tormentos materiais, se isso o pode preservar do mal e desde que lhe traga luz para aquelas questões.
Sua crença, afinal de contas, não tornará reais as coisas que não existem, se de fato não existirem.
Creia, se lhe agrada, que não temos senão uma existência corporal.
Isto não lhe impedirá de nascer aqui ou em outra parte, à sua revelia, se assim tiver de ser.

Creia que o mundo inteiro foi feito em seis vezes vinte e quatro horas, se tal for sua opinião.
Isso não impedirá que a Terra ostente, escritas em suas camadas geológicas, as provas do contrário.

Creia, se lhe apraz, que Josué deteve o movimento do Sol.
Isso não impedirá que a Terra gire.

Creia que há apenas seis mil anos encontra-se o homem na face da Terra.
Por isso, os fatos não serão impossibilitados de provar o absurdo dessa crença.

E que dirá o senhor se, um belo dia, quando menos esperar, a inexorável Geologia vier demonstrar, com vestígios incontestáveis, como já provou tantas outras coisas, a anterioridade do homem?

Creia na existência do demónio; creia em tudo o que quiser, se a crença nessas coisas puder torná-lo bondoso, humano e caritativo para com seus semelhantes.
Como doutrina moral, o Espiritismo só impõe uma coisa: a necessidade de praticar o bem e não praticar o mal.
É uma ciência experimental, conquanto — volto a repetir — tenha consequências morais, que por sua vez constituem a confirmação e a prova dos grandes princípios da religião.

Quanto às questões secundárias, essas ele deixa à consciência de cada um.

Note, porém, que o Espiritismo não nega, em princípio, alguns dos pontos divergentes dos quais o senhor acaba de falar.
Se tivesse lido tudo o que tenho escrito neste particular, teria notado que se limita a dar-lhes uma explicação mais racional e mais lógica que a vulgarmente admitida.
Assim é que não nega a existência do purgatório, por exemplo.
Pelo contrário, demonstra a sua necessidade e justiça.
Faz ainda mais que isso: define-o.
O inferno tem sido descrito como uma fogueira imensa.
Evidentemente não é assim que o entende a alta teologia.
Diz que esta é uma figura, que o fogo em que se abrasam os condenados é um fogo moral, símbolo das dores mais intensas.

E quanto à eternidade das penas, se fosse possível devassar a opinião pública para conhecermos as opiniões íntimas; se fosse pôssível interrogar todos os homens dotados de raciocínio e compreensão, mesmo os mais religiosos, ver-se-ia de que lado está a maioria, pois a ideia da eternidade dos suplícios é a negação da infinita misericórdia de Deus.

Ademais, eis o que diz a Doutrina Espírita neste particular: A duração do castigo está subordinada ao melhoramento do Espírito culpado.
Nenhuma condenação é pronunciada contra ele, por tempo determinado.
O que Deus exige para por termo aos seus sofrimentos, é o arrependimento, a expiação e a reparação do mal feito; numa palavra: um melhoramento sério, efetivo e um retorno sincero ao bem.
O Espírito é assim o árbitro de sua própria sorte; pode prolongar os sofrimentos por sua persistência no mal e aplacá-los ou abreviá-los com esforços em praticar o bem.

Do fato da duração do castigo estar subordinada ao arrependimento, resulta que o Espírito culposo, que não se arrependesse nem se melhorasse nunca, sofreria sempre, sendo para ele eterna a pena.
A eternidade do castigo, pois, deve ser entendida num sentido relativo e não em sentido absoluto.

Uma condição inerente à inferioridade dos Espíritos é a de não verem o término de sua situação e crerem que sofrerão para sempre.
Isto constitui um castigo para eles.
Quando, porém, o arrependimento lhes abre a alma, Deus faz com que entrevejam um raio de esperança.

Esta doutrina está, evidentemente, mais conforme à justiça de Deus, que castiga enquanto persistimos no mal e que perdoa quando voltamos ao bom caminho.
E quem concebeu isso? Nós?! Não! São os Espíritos que o ensinam e ensinam e provam pêlos exemplos que diariamente nos oferecem.

Portanto, os Espíritos não negam as penas futuras, uma vez que descrevem seus próprios sofrimentos.
E esse quadro comove-nos mais do que o das chamas eternas, pelo fato de ser perfeitamente lógico.
Compreende-se que isto é possível, que deve ser assim, que essa situação é consequência lógica de um estado de coisas e pode ser aceita pelo raciocínio do filósofo, visto não conter em si absolutamente nada que repugne à razão.

Este é o motivo por que as crenças espíritas trouxeram ao bom caminho uma multidão de pessoas, algumas até materialistas e que não se haviam detido ante o temor do inferno, tal qual nos é descrito.

S.
— Sem deixar de admitir seu raciocínio, não acredita que o populacho necessita mais de imagens plásticas de que uma filosofia que talvez não compreenda?

A.
K.
— Este é um erro que já produziu mais de um materialista ou que, pelo menos, apartou da religião não poucos indivíduos.
Chega sempre um momento em que essas coisas já não mais impressionam, e então as pessoas que não se dão ao trabalho de aprofundar os raciocínios, desprezam o todo, pois dizem de si para si: Se me ministraram como verdade incontestável um ensinamento errado, se me deram uma imagem, uma figura, em vez da realidade, quem pode me assegurar que o restante seja também verdadeiro?

A fé fortifica-se, pelo contrário, se com seu desenvolvimento o raciocínio nada vem a desprezar.
A religião sempre ganhará em seguir a marcha das ideias; e se vier a perigar um dia, será porque, enquanto os homens se adiantam, ela permanece estacionária.

Crer hoje que os homens podem ser conduzidos pelo temor ao demónio e aos sofrimentos eternos, é cometer um erro de época.

S.
— A Igreja reconhece hoje, efetivamente, que o inferno material é uma figura.
Mas isso não exclui a existência dos demónios.
Sem eles, como se explicariam as influências malignas? Elas não vêm, certamente, de Deus.

A.
K.
— O Espiritismo não admite os demónios, no sentido vulgar da palavra.
Admite, porém, os maus Espíritos, que por sinal não são muito melhores e causam tanto mal quanto aqueles, pela sugestão de maus pensamentos.
O Espiritismo diz apenas que não são seres excepcionais, especialmente criados para o mal e perpetuamente destinados a ele, espécie de párias da criação e verdugos do género humano.
São seres atrasados, imperfeitos ainda, aos quais, entretanto, Deus também reserva um futuro.
Nisto concorda com a Igreja ortodoxa grega, que admite a conversão de satanás, o que é uma alusão à evolução dos maus Espíritos.

Note, também, que a palavra demónio só implica a ideia de Espírito mau, na acepção moderna que se lhe deu, pois a palavra grega, daimon, significa génio, inteligência.
Apesar disso, hoje em dia ela denomina apenas os espíritos maus.

Admitir a comunicação dos maus Espíritos é reconhecer em princípio a realidade das manifestações.
A questão é saber se são eles que se comunicam, conforme admite a Igreja, para motivar a proibição da comunicação com os Espíritos.
Aqui invocamos o raciocínio e os fatos.
Se algum Espírito se comunica, qualquer que seja ele, o faz com a permissão de Deus.
E como se compreenderia que só fosse permitida a vinda dos maus?

Como daria Deus a estes a liberdade ampla de vir ludibriar os homens e proibiria aos bons fazerem-lhes oposição, neutralizando suas doutrinas perniciosas? Essa crença não equivale a por em dúvida o seu poder, a sua bondade e fazer de satanás um rival da divindade?

A Bíblia, o Evangelho, os Padres da Igreja reconhecem, indubitavelmente, a possibilidade de comunicação com o mundo invisível.
E do mundo invisível não estão excluídos os bons Espíritos.
Ou estariam hoje excluídos? Por outro lado, ao admitir a Igreja a autenticidade de certas aparições e comunicações dos santos, joga por terra a ideia de que só as possamos ter com os maus Espíritos.

Quando só boas coisas encerram as comunicações, quando nelas só se prega a mais pura e sublime moral evangélica, a abnegação, o desinteresse e o amor ao próximo, quando nelas o mal é censurado, qualquer seja o disfarce sob o qual se apresente, é racional crer que o Espírito maligno venha de tal maneira fazer sua própria acusação?

S.
— O Evangelho nos ensina que o anjo das trevas, ou satanás, se transforma em anjo de luz, para seduzir os homens.

A.
K.
— Satanás, segundo o Espiritismo e a opinião de um grande número de filósofos cristãos, não é um ser real, mas a personificação do mal, como nos tempos antigos Saturno era a personificação do tempo.

A Igreja toma literalmente esta figura alegórica.
É uma questão de opinião, que não discutirei.
Mas por um instante admitamos que satanás seja um ser real.
À força de exagerar o seu poder, com a intenção de causar temor, chegaram a um resultado diametralmente oposto, isto é, à destruição, não apenas de todo o temor, mas de toda a crença no personagem, conforme reza o provérbio: Quem muito quer provar nada prova .
Representam-no, eminentemente sagaz, manhoso e astuto, mas na questão do Espiritismo fazem-no desempenhar o papel de tonto ou de estúpido.

Uma vez que o objetivo de satanás é alimentar o inferno com suas vítimas e roubar almas a Deus, compreende-se que se dirija aos que estão no bom caminho, para os induzir ao mal, e que para tanto se transforme, como na bela alegoria, em anjo de luz, isto é, que simule hipocritamente a virtude.
O que não se compreende, porém, é que deixe escapar aqueles que já tem presos entre as garras.

Os que não crêem em Deus nem na alma, os que depreciam a prece e estão chafurdados no vício são, quanto podem sê-lo, do diabo; não é possível mergulhá-los mais ainda no lodaçal.
Ora, excitá-los a voltar a Deus, a orar, a se submeterem à sua vontade, animá-los a renunciar ao mal, pintando-lhes a felicidade dos eleitos e a triste vida que espera os malvados, seria próprio de um simplório; seria um golpe mais estúpido que libertar um pássaro cativo com a ideia de o apanhar em seguida.

Há, pois, na doutrina da comunicação exclusiva dos demónios, uma contradição passível de ser apreciada por todo homem de senso, e por isso jamais se persuadirá alguém de que os Espíritos que reconduzem a Deus aqueles que o negavam, ao bem os que praticavam o mal, que consolam os aflitos, que dão força e ânimo aos fracos, que, pela sublimidade de seus ensinamentos, elevam a alma às alturas que sobrepujam a vida material, sejam emissários de satanás e que por esse motivo devamos nos abster de toda relação com o mundo invisível.

S.
— A Igreja proibe as comunicações com os Espíritos dos mortos porque são contrárias à religião e porque estão formalmente condenadas pelo Evangelho e por Moisés.
Ao pronunciar este último a pena de morte contra os que se dedicam a semelhantes práticas, prova quão repreensíveis são elas aos olhos de Deus.

A.
K.
— Desculpe, mas essa proibição não se encontra em parte alguma do Evangelho; encontra-se apenas na Lei Mosaica.
Trata-se, então, de saber se a Igreja põe a Lei Mosaica acima da Evangélica e, conseguintemente, se é mais judia que cristã.

É digno de nota que, de todas as religiões, a que menos oposição fez ao Espiritismo foi a judaica que, por sinal, não apelou, contra as evocações, para a Lei de Moisés, em que se apoiam as seitas cristãs.
Se as prescrições bíblicas são o código da fé cristã, por que proibem a leitura da Bíblia? Que se diria se se proibisse a um cidadão estudar o código de leis do seu país?

A proibição ditada por Moisés tinha sua razão de ser, pois o legislador hebreu empenhava-se em fazer com que seu povo abandonasse os costumes egípcios.
Esse de que tratamos era objeto de abusos.

Não se evocavam os mortos pelo respeito e afeto para com eles, nem por sentimento de piedade, mas porque era um meio de adivinhação, objeto de vergonhoso tráfico, explorado pelo charlatanismo e pela superstição.
Teve pois Moisés razões de sobra para o proibir.
Porque necessitava de meios rigorosos para governar um povo indisciplinado, pronunciou contra esse abuso uma pena tão severa.
Por iguais motivos a pena de morte é tão pródiga em sua legislação.
É, pois, sem razão que se recorre à severidade do castigo para provar o grau de culpabilidade existente na evocação dos mortos.

Se a proibição de os evocar procede do próprio Deus, como pretende a Igreja, deve ter sido ele quem ditou a pena de morte contra os delinquentes.
A pena tem, pois, uma origem tão sagrada quanto a proibição.
Por que não foi conservada até hoje? Todas as leis de Moisés são promulgadas em nome de Deus, por ordem sua.
Supondo-se que ele seja realmente o seu autor, por que não mais são observadas?

Se a Lei de Moisés é para a Igreja artigo de fé sobre certo ponto, por que não o é sobre todos? Por que recorrem a ela quando convém e a desprezam quando não convém? Por que não seguir todas as prescrições, entre as quais a circuncisão, que Jesus sofreu e não aboliu?

Duas partes havia na Lei Mosaica:

1a) A lei de Deus, resumida nas tábuas do Sinai.
Esta subsistiu, pois é divina; e o Cristo mais não fez que desenvolvê-la.

2ª) A lei civil ou disciplinaria, apropriada aos costumes da época e que Jesus aboliu.

Hoje as circunstâncias já não são as mesmas e a proibição de Moisés carece de motivos.
Por outra parte, se a Igreja proibe a evocação dos Espíritos, não se pode proibir que eles venham, por vontade própria e independentemente de apelo.
Não se vêem todos os dias, por intermédio de pessoas que nunca se ocuparam com o Espiritismo, os mais variados fenómenos? E antes que se tratasse do Espiritismo, já não se observavam tantas outras manifestações?

Outra contradição: Se Moisés proibiu evocar os Espíritos dos mortos, foi porque esses podiam vir.
De outra maneira a proibição não teria razão de ser.
E se na época podiam vir, por que não poderiam também hoje? E se são os Espíritos dos mortos, não são exclusivamente os demónios.

S.
— A Igreja não nega que os bons Espíritos possam se manifestar, pois reconhece que os santos fizeram manifestações.
Entretanto, ela não considera bons os que contradizem seus princípios imutáveis.
É certo que os Espíritos afirmam a realidade das penas e recompensas futuras, mas não como ensina a Igreja.
E só ela pode julgar os ensinamentos deles e discernir entre bons e maus.

A.
K.
— Eis a grande questão.
Galileu foi acusado de herege e de receber inspirações do demónio porque veio revelar uma lei da natureza, provando o erro de uma religião que se julgava inatacável e pela qual foi julgado e excomungado.

Se as manifestações espíritas tivessem sempre abundado mas, segundo os interesses da Igreja, se os Espíritos não tivessem proclamado a liberdade de consciência e combatido certos abusos, teriam sido benvindos e não seriam qualificados de demónios.
Tal a razão por que todas as religiões, seja a dos muçulmanos seja a dos católicos, supondo-se na posse exclusiva da verdade absoluta, olham como obra do demónio toda e qualquer doutrina que não seja exclusivamente ortodoxa, ao seu ponto de vista.
.
.

Os Espíritos vêm não para derrogar a religião, mas para revelar, como Galileu, novas leis da natureza.
Se uns certos pontos da fé sentem-se melindrados, é porque estão em contradição com aquelas leis, como se deu com a crença no movimento do Sol.
A questão toda está em se saber se um artigo de fé pode anular uma lei da natureza, obra de Deus.
Uma vez reconhecida essa lei, não será mais prudente interpretar o dogma no sentido daquela, que atribuí-la ao demónio?

S.
— Passemos por sobre a questão dos demónios: sei que é diversamente interpretada pêlos teólogos.
Mas a reencarnação, parece difícil de conciliar com os dogmas, uma vez que é apenas renovação da metempsicose de Pitágoras.

A.
K.
— Não é este o momento próprio a discussão de uma questão que exige amplo desenvolvimento.
O senhor encontrá-la-á no Livro dos Espíritos e no Evangelho Segundo o Espiritismo, Direi, pois, apenas duas palavras.

A metempsicose dos antigos consistia na transmigração da alma humana para o corpo dos animais, e isso implicava numa degradação.
Ademais, essa doutrina não era o que vulgarmente se pensa.
A transmigração para os animais não era considerada uma condição inerente à natureza da alma humana, mas um castigo temporário.
Assim, as almas dos assassinos passavam para o corpo das feras, para nele receberem o castigo de suas culpas; as dos impudicos para os porcos e javalis; as dos inconstantes e frívolos às aves; a dos preguiçosos e ignorantes aos animais aquáticos.
Depois de alguns milhares de anos, consoante a culpabilidade de cada um, dessa espécie de prisão tornava a alma a ingressar na humanidade.
A encarnação animal não era, pois, uma condição absoluta; relacionava-se, como se vê, com a reencarnação humana, e a prova disso é que o castigo dos homens tímidos consistia em passar ao corpo de mulheres expostas ao desprezo e à injúria (Veja-se A pluralidade das existências da alma , por Andrés Pezzani).

Antes que um artigo de fé para os filósofos, era um espantalho para os ingénuos.

Também é assim que nós dizemos aos meninos: Se não fores bonzinho o lobo virá te comer .
Diziam os antigos: Vós vos convertereis em lobos .
Na atualidade se diz: O capeta os arrebatará, carregando-os para o inferno .

A pluralidade das existências, segundo o Espiritismo, difere essencialmente da metempsicose, porque não admite a encarnação da aima humana, nem sequer como castigo, nos animais.
Os Espíritos ensinam que a alma não retrograda nunca e progride sempre.
Suas diferentes existências corporais realizam-se na humanidade, e cada nova existência é para ela um passo à frente, no caminho do progresso moral e intelectual, o que é muito diferente.
Não podendo conseguir um desenvolvimento completo numa única existência, quase sempre abreviada por causas acidentais, permite-lhe Deus prosseguir numa nova encarnação a tarefa que não pode concluir, ou tornar a começar a que foi mal desempenhada.
A expiação na vida corporal consiste nas tribulações que durante ela sofremos.

Com respeito à questão de saber se a pluralidade das existências é ou não contrária a certos dogmas da Igreja, limito-me a dizer o seguinte: ou a encarnação existe ou não existe.
Se existe, logicamente está nas leis da Natureza.
Para se provar que não existe, demandaria provar antes que é contrária, não aos dogmas, mas àquelas leis e que se encontrasse outra capaz de, mais clara e logicamente, explicar umas tantas questões que somente ela pode resolver.

Ademais, é fácil demonstrar que certos dogmas encontram na reencarnação uma sanção racional, que os torna aceitáveis por parte daqueles que os desprezam por não os compreender.

Não trata, pois, de destruir, mas de interpretar: e isso dar-se-á finalmente, mercê da força mesma das coisas.
Os que não querem aceitar a interpretação são livres de o fazer, assim como até hoje, são livres de acreditar, se quiserem, que o Sol gira.
A ideia da pluralidade das existências dissemina-se com uma rapidez maravilhosa, em virtude de sua extrema lógica e de sua conformidade com a justiça de Deus.
Desde que seja reconhecida como verdade natural e aceita por toda gente, que poderá fazer a Igreja?

Resumindo: a reencarnação não é um sistema imaginado para se tornar o sustentáculo de uma causa ou uma opinião pessoal.
É ou não é um fato? Se provado está que certos efeitos são inteiramente inexplicáveis sem a reencarnação, é preciso admitir que são consequência da reencarnação.

E se está na natureza, não poderá, certamente, ser anulada por uma opinião contrária.
88 ALLAN KARDEC

S.
— Os que não crêem nos Espíritos e em suas manifestações, recebem conforme a opinião dos mesmos, urn pior quinhão na vida futura?

A.
K.
— Se esta crença fosse indispensável à salvação dos homens, que seria daqueles que, desde que o mundo existe, não puderam possuí-la, e dos que, em todo o tempo que está por vir, morrerão sem a obter? Pode Deus cerrar-lhes as portas do futuro? Não! Os Espíritos que nos instruem são mais lógicos.
Dizem: Deus é soberanamente justo e bom; Ele não faz a sorte futura do homem depender de condições independentes de sua vontade .

Não dizem: Fora do Espiritismo não há salvação possível ; afirmam, como o Cristo, que Fora da caridade não há salvação .

S.
— Permita-me dizer-lhe então que, se os Espíritos não ensinam outros princípios que não sejam os encontrados no evangelho, não compreendo que utilidade possa ter o Espiritismo, uma vez que, antes dele, já podíamos alcançar nossa salvação, e sem ele podemos ainda consegui-la.

O mesmo não sucederia se os Espíritos viessem ensinar outras verdades grandes e novas, algum desses princípios que transformam a face da Terra, como fez Jesus Cristo.
Este, pelo menos, era um só; sua doutrina, única, enquanto que os Espíritos existem aos milhares, contradizem-se mutuamente, afirmando ser branco o que outros dizem ser preto, motivando o que se verifica desde o começo: seus partidários constituem-se em várias seitas.
Não seria melhor deixar os Espíritos em sua tranquilidade e nos atermos ao que já possuímos?

A.
K.
— O senhor incorre no erro de não se arredar do seu ponto de vista e de tomar sempre a Igreja como único critério do conhecimento humano.
Se Jesus Cristo disse a verdade, coisa diversa não poderia dizer o Espiritismo.
Em vez de repudiá-lo, dever seria acolhê-lo como a um poderoso auxiliar que vem confirmar, pelas vozes de além-túmulo, as verdades fundamentais da religião, minadas pela incredulidade.
Que seja combatido pelo materialismo, compreende-se.
Mas que a Igreja se alie ao materialismo para o combater, é menos concebível.
O que é, também, igualmente inconsequente é que a Igreja qualifique de demoníaco um ensinamento que se apoia na mesma autoridade e que proclama a missão divina do fundador do cristianismo.

Mas será que o Cristo disse tudo? Podia ele revelar tudo? Não! Ele próprio afirmou: Muitas coisas tenho ainda para dizer-lhes.
Vós, porém, não as compreenderíeis; por isso é que lhes falo em parábo-las .
O Espiritismo chega-nos hoje, que o homem já está mais apto a compreendê-lo, para completar o que o Cristo intencionalmente apenas mencionou, ou apresentou sob forma alegórica.
Indubitavelmente o senhor dirá que à Igreja competia dar essa explicação.
Qual delas, porém? A romana, a grega ou a protestante? Uma vez que não estão acordes, cada uma daria essa explicação ao seu modo, reivindicando, por outro lado, o privilégio de dá-la.

Qual delas poderia harmonizar os pontos dissidentes? Deus, que é prudente, prevendo que a essa explicação os homens mesclariam suas paixões e suas preocupações, não lhes confiou essa nova revelação; encarregou seus mensageiros, os Espíritos, de a proclamarem em todos os pontos do globo, sem dar privilégio a qualquer culto em particular, a fim de que pudesse ser aplicada a todos e para que nenhum lhe lançasse a mão em proveito próprio.

Por outro lado não terão os diversos cultos cristãos se desviado em nada do roteiro traçado pelo Cristo? Terão escrupulosamente observado seus preceitos de moral? Não terão modificado o sentido de suas palavras, para nelas apoiarem a ambição e as paixões humanas, em virtude de serem elas a condenação de ambas? O Espiritismo, pela voz dos Espíritos enviados por Deus, vem atrair aqueles que dele se haviam apartado à estrita observância dos seus preceitos.
Não será este último motivo, especialmente, o que lhe acarreta o qualificativo de obra demoníaca?

Sem razão o senhor denomina de seitas a algumas divergências de opinião com respeito aos fenómenos espíritas.
Não é de estranhar que no princípio de uma ciência, quando para muitos as observações são incompletas, surjam teorias contraditórias.
Essas teorias, porém, residem em pontos de desenvolvimento e não nos princípios fundamentais.

Podem constituir escolas que explicam certos fatos à sua maneira, mas não seitas como o são os diferentes sistemas que dividem os nossos sábios com respeito às ciências exatas, à medicina, etc.
Suprima, pois, a palavra seita, que é imprópria ao caso presente.

Ademais, o próprio cristianismo não ocasionou, desde sua origem, um sem-número de seitas? Por que não foi a palavra do Cristo bastante poderosa para silenciar as controvérsias? Por que é ela suscetível de interpretações que, ainda em nossos dias, dividem os cristãos em diferentes igrejas que pretendem, todas, a exclusividade da verdade necessária à salvação, que se detestam mútua e intimamente, e trocam anátemas entre si, em nome do divino mestre de todas, que por sinal pregou unicamente amor e caridade?

O senhor responderá: É a fraqueza dos homens! .
Pois muito bem; que seja! Mas, por que então exigir que o Espiritismo, de uma hora para outra, triunfe sobre essa fraqueza e transforme a humanidade como que pelo toque da varinha mágica?

Passemos à questão da utilidade.
O senhor disse que o Espiritismo nada de novo ensina.
É erro.
Pelo contrário, muito ensina àqueles que não se detêm na sua exterioridade.
Tivesse ele apenas substituído a máxima Fora da Igreja não há salvação possível, que separa os homens, por esta outra: Fora da caridade não há salvação, que os irmana, e já teria inaugurado uma nova era para a humanidade.

Disse o senhor que poderíamos passar sem ele.
Isso é conforme.
Também poderíamos passar sem um grande número de descobertas científicas.
Seguramente os homens estariam tão bem antes quanto depois da descoberta de todos os novos planetas, do cálculo dos eclipses, do conhecimento do mundo microscópio e de outras tantas coisas.
Para viver e cultivar seu trigo, o lavrador não necessita saber o que é um cometa.
Ninguém nega, entretanto, que todas essas coisas dilatam o círculo das ideias e nos levam a penetrar, mais e mais, nas leis da natureza.

O mundo dos Espíritos é, pois, uma dessas leis que o Espiritismo nos leva a conhecer, abrindo-nos os olhos para a influência que exercem sobre o mundo corporal.
Supondo, ainda, que a isso se limitasse a sua utilidade, já não seria importantíssima a revelação de semelhante poder?

Vejamos agora sua influência moral.
Admitamos que realmente nada de novo ensine nesse particular.
Qual é o maior inimigo da religião? O materialismo, que é a descrença de tudo.
E o Espiritismo é a negação do materialismo, o qual depois dele perdeu sua razão de ser.
Já não se apela ao raciocínio, à fé cega, para dizer ao materialista que nem tudo acaba com o corpo.
Apela-se aos fatos.
Demonstra-se-lhe, permite-se-lhe que toque com o dedo e veja com os olhos.
E não será de grande importância esse serviço que presta à humanidade e à religião? Isto, porém, não é tudo: a certeza da realidade da vida futura, o quadro pleno da vida que nos apresentam aqueles cujo ingresso nela precedeu ao nosso, comprovam a necessidade da prática do bem e as consequências inevitáveis do mal.

Por isto, sem ser uma religião, conduz essencialmente às ideias religiosas, desenvolvendo-as naqueles que não as têm e fortificando-as naqueles em que vacilam.
A religião encontra, portanto, um apoio nele, não por certo aos olhos dessas inteligências míopes, que vêem toda a religião na doutrina do fogo eterno, na letra mais que no espírito, mas sim aos dos que a contemplam em relação à grandeza e à majestade de Deus.

Numa palavra: o Espiritismo dilata e eleva as ideias, combate os abusos gerados pelo egoísmo, a cobiça e a ambição.
E quem se atreverá a declarar-se seu campeão e os defender?

Se o Espiritismo não é imprescindível à salvação, facilita-a, fortificando-nos no caminho do bem.
Por outro lado, qual o homem sensato que será capaz de afirmar que a falta de ortodoxia é mais repreensível aos olhos de Deus que o ateísmo e o materialismo?

Proponho abertamente as seguintes perguntas a todos os que combatem o Espiritismo, sob o aspecto de suas consequências religiosas:

1ª) Entre o que em nada crê e o que, crendo nas verdades gerais, não admite certas partes do dogma, qual o que terá a pior parte na vida futura?

2ª) Por alguma coisa de reprovável que tiverem feito serão julgados igualmente o protestante e o cismático, o ateu e o materialista?

3ª) O que não é ortodoxo no rigor da palavra, mas pratica todo o bem que pode, que é bom e indulgente para com o próximo e leal em suas relações sociais, terá a salvação menos segura do que um outro que, crendo em tudo, é duro, egoísta e falto de caridade?

4ª) Que é preferível aos olhos de Deus: a prática das virtudes cristãs, sem a dos deveres da ortodoxia, ou a prática destes últimos sem a da moral?

Respondidas estão, senhor padre, as perguntas e objeções apresentadas.
Como disse de início, não tive a intenção preconcebida de o atrair às nossas ideias e modificar suas convicções.
Limitei-me a levá-lo a considerar o Espiritismo sob o seu verdadeiro aspecto.
Se o senhor não tivesse vindo eu não teria ido buscá-lo.
Não quer isto dizer que desprezássemos a sua adesão aos nossos princípios, caso tal viesse a dar-se.
Bem longe disso! Seremos, pelo contrário, bem felizes, como aliás com todas as adesões que conseguimos, e que são para nós tanto mais valiosas quanto mais livres e voluntárias.
Não só nos faltam quaisquer direitos para exercer coação sobre quem quer que seja, como seria para nós uma questão de escrúpulo perturbar a consciência dos que, tendo crenças que lhes satisfazem, não vêm a nós espontaneamente.

Temos dito que a melhor maneira de uma pessoa adquirir conhecimentos sobre o Espiritismo é estudar-lhe a teoria.
Os fatos virão depois, naturalmente, e serão compreendidos, qualquer que seja a ordem em que os tragam as circunstâncias.
Nossas publicações têm sido feitas com o propósito de favorecer esse estudo.
Aqui está a ordem em que o aconselhamos:

O que primeiro se deve ler é este resumo, que oferece o conjunto e os pontos cardiais da ciência.
Com ele estará possibilitada a formação de uma ideia.
Também estará feita a convicção de que, no fundo, o Espiritismo contém alguma coisa de sério.
Nesta rápida exposição nos propusemos indicar os pontos em que, particularmente, deve fixar-se a atenção do observador.
A ignorância dos princípios fundamentais é causa das falsas apreciações da maior parte dos que julgam o que não compreendem, ou que o fazem com base em ideias preconcebidas.

Se essa primeira leitura despertar o desejo de aprender mais, ler-se-á O Livro dos Espíritos, onde se acham amplamente desenvolvidos os princípios da doutrina.
Depois, O Livro dos Médiuns, que abrange a parte experimental e é destinado a servir de guia aos que por si mesmos querem operar bem, como aos que desejam dar-se conta dos fenómenos.

Seguem-se, imediatamente, as obras em que estão desenvolvidas as aplicações e consequências da doutrina.
E tais são: O Evangelho segundo o Espiritismo, o Céu e o Inferno, a Génese, etc.

A Revue Spirite é, de certa maneira, um curso de aplicação, pêlos numerosos exemplos que oferece e os desenvolvimentos que encerra, sobre a parte teórica e a parte experimental.

Às pessoas de respeito, que realizam um estudo preliminar, teremos o prazer de dar, verbalmente, as explicações necessárias sobre as partes que não tenham sido suficientemente compreendidas.

Copyright 2004 – LAK

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