Livro Céu e o Inferno – Primeira Parte – Capítulo IX Os Demônios – Allan Kardec

Origem da crença nos Demônios

1 — Os demônios desempenharam em todas as épocas um papel nas diversas teogonias.
Embora consideravelmente decaídos na opinião geral, a importância que ainda lhes atribuem em nossos dias dá a esta questão uma certa gravidade, porque ela se refere ao próprio fundamento das crenças religiosas.
É portanto conveniente que a examinemos em todos os seus aspectos.

A crença na existência de um poder superior é instintiva e podemos encontrá-la entre os homens sob as mais diferentes formas, em todas as épocas.
Mas se, no grau de adiantamento intelectual em que hoje se encontram, ainda discutem a natureza e os atributos dessa potência, quanto mais imperfeitas deviam ser suas noções a respeito nas fases iniciais da humanidade!

2 — A representação que hoje fazemos dos povos primitivos deslumbrados com as belezas da Natureza, nas quais admiram a bondade do Criador, é sem dúvida muito poética, mas desprovida de realidade.

Quanto mais próximo se encontra o homem do estado natural, mais é dominado pelo instinto, como ainda podemos ver entre os povos selvagens e bárbaros dos nossos dias.
O que mais o preocupa, ou melhor, o que exclusivamente o preocupa é a satisfação das suas necessidades vitais, pois na verdade não possui outras.
O senso moral, que lhe torna possível gozar os prazeres dessa ordem, só se desenvolve aos poucos e demoradamente.

A alma tem a sua infância, sua adolescência e sua virilidade, como acontece na vida corpórea.
Mas, para atingir a virilidade, que a torna capaz de compreender as coisas abstratas, quanto deve ainda percorrer no caminho da evolução humana! Quantas existências terá ainda de cumprir!

Sem remontarmos aos tempos primitivos, vejamos ao nosso redor as populações camponesas e perguntemos que sentimentos de admiração despertam nelas o nascer do sol com seu esplendor, o céu estrelado, o gorjeio dos pássaros, o marulhar das ondas, os prados verdejantes e floridos.
Para elas, o sol se levanta porque isso é habitual e é necessário que dê o calor para amadurecer as colheitas sem as queimar.
É tudo quanto lhes interessa.
Se olham o céu é para saber se fará bom ou mau tempo no dia seguinte.
Que os pássaros cantem ou não, isso pouco lhes interessa, desde que não vão comer os grãos das semeaduras.
Às melodias do rouxinol preferem o cacarejar das galinhas e os grunhidos dos porcos.
O que interessa nas ondas claras ou borbulhantes dos riachos, é que não sequem e não produzam inundações.
Quanto aos prados, que lhes dêem boa pastagem, com ou sem flores.
É tudo quanto desejam, diremos mais, tudo o que compreendem da Natureza, e no entanto estão já bem distantes dos homens primitivos!

3 — Se nos reportamos aos primitivos, vemo-los ainda mais inteiramente preocupados com a satisfação de seus interesses materiais.
Tudo o que serve para os ajudar e tudo o que possa prejudicá-los resumem para eles o bem e o mal neste mundo.
Crêem num poder extra-humano, mas como o que acarreta prejuízo material é o que mais lhes toca, atribuem esses prejuízos ao poder de que fazem, aliás, uma idéia muito vaga.
Nada podendo ainda conceber fora do mundo visível e tangível, imaginam que esse poder se constitui dos seres e das coisas que lhes são prejudiciais.

Os animais daninhos são, assim, para eles, os agentes naturais e diretos desse poder.
Pela mesma razão, imaginam a personificação do bem nas coisas úteis.
Vem daí o culto de certos animais, de certas plantas e mesmo de objetos inanimados.
Mas o homem é geralmente mais sensível ao mal do que ao bem, de maneira que o bem lhe parece natural enquanto o mal lhe parece extraordinário.
É por isso que, em todos os cultos primitivos, as cerimônias em honra ao poder malfazejo são as mais numerosas: o medo é mais dominante que a gratidão.

Por muito tempo o homem só compreende o bem e o mal do ponto de vista físico.
O sentimento do bem moral e do mal moral assinala um progresso da alma humana.
Somente então o homem entrevê a espiritualidade e compreende que o poder sobre-humano está fora do mundo visível e não nas coisas materiais.
Essa conquista pertence a algumas inteligências privilegiadas, mas que assim mesmo não conseguem ir além de certos limites.

4 — Vendo-se uma luta incessante entre o bem e o mal, este freqüentemente vencendo aquele, e não se podendo racionalmente admitir que o mal seja um poder benfazejo, conclui-se pela existência de dois poderes rivais que governam o mundo.
Foi assim que nasceu a doutrina dos dois princípios: o do bem e o do mal, doutrina lógica na ocasião, porque o homem era ainda incapaz de conceber outra e de compreender a natureza do Ser supremo.
Como poderia compreender que o mal é uma ocorrência passageira da qual pode sair o bem e que os males que o afligiam deviam levá-lo à felicidade, ajudando o seu adiantamento?

Os limites do seu horizonte moral nada lhe permitiam ver além da vida presente, nem quanto ao futuro, nem quanto ao passado.
Ele não podia compreender que havia progredido, nem que teria ainda de progredir individualmente, e menos ainda que as vicissitudes da vida resultam da imperfeição do seu próprio ser espiritual, que preexiste e sobrevive ao corpo, depurando-se numa série de existências até chegar à perfeição.
Para compreender que o bem pode sair do mal não lhe bastava ver apenas uma existência, era necessário abranger o conjunto, pois só então se tornam claras as verdadeiras causas e os seus efeitos.

5 — O duplo princípio do bem e do mal foi, durante longos séculos, sob diferentes nomes, a base de todas as crenças religiosas.
Foi personificado com os nomes de Ormuz e Arimã entre os persas e de Jeová e Satã entre os hebreus.
Mas, como todo soberano deve ter os seus ministros, todas as religiões admitiram a existência de poderes secundários que são os gênios bons ou maus.
Os pagãos personificaram esses poderes numa multidão de individualidades, tendo cada uma atribuições especiais no tocante ao bem e ao mal, as virtudes e aos vícios, dando-lhes a denominação geral de deuses.
Os Cristãos e os Muçulmanos herdaram dos Hebreus os anjos e os demônios.

6 — A doutrina dos demônios tem portanto a sua origem na antiga crença no princípio do bem e do mal.
Vamos examiná-la aqui somente do ponto de vista cristão, procurando ver se ela está em relação com o conhecimento mais exato que hoje possuímos dos atributos da Divindade.

Esses atributos são o ponto de partida, a base de todas as doutrinas religiosas.
Os dogmas, o culto, as cerimônias, as práticas, a moral, tudo nelas se relaciona com a idéia mais ou menos justa, mais ou menos elevada que fazem de Deus, desde o fetichismo até o Cristianismo.
Se a natureza de Deus é ainda um mistério para a nossa inteligência, entretanto já a compreendemos melhor do que nunca, graças aos ensinamentos do Cristo.
O Cristianismo, concordando nisso com os princípios racionais, nos ensina que:

Deus é único, eterno, imutável, imaterial, todo-poderoso, soberanamente justo e bom, e todas as suas perfeições são infinitas.

Como dissemos atrás (Cap.
VI.
Penas Eternas): Se tirarmos a menor parcela de um só dos atributos de Deus, não teremos mais Deus, pois poderia existir um ser mais perfeito.
Esses atributos, compreendidos na sua mais absoluta plenitude, constituem o critérium de todas as religiões, a medida de verdade de cada um dos princípios que elas ensinam.
Para que um desses princípios seja verdadeiro é preciso que não atente contra nenhuma das perfeições de Deus.
Vejamos se isso acontece no tocante à doutrina vulgar dos demônios.

Os demônios segundo a Igreja

7 — Segundo a Igreja, Satã, o chefe ou rei dos demônios, não é uma personificação alegórica do mal, mas um ser real que pratica exclusivamente o mal, enquanto Deus faz exclusivamente o bem.
Tomemo-lo, pois, exatamente como no-lo apresentam.

Satã existe desde toda a eternidade, como Deus, ou é posterior a Deus? Se sempre existiu, é incriado e portanto igual a Deus.
Nesse caso, Deus não é único, pois há o Deus do bem e o Deus do mal.

Satã é posterior? Então é uma criatura de Deus.
E desde que só faz o mal, sendo incapaz de praticar o bem e de se arrepender, Deus criou um ser destinado perpetuamente ao mal.
Se o mal não é obra de Deus, mas de uma de suas criaturas predestinada a fazê-lo, Deus será sempre o seu primeiro autor e nesse caso não é infinitamente bom.
Acontece o mesmo com todos os seres maus chamados demônios.

8 — Foi essa durante muito tempo a crença a respeito dos demônios.
Atualmente se diz:

Deus, que é a bondade e a santidade em essência, não os havia criado maus e malfazejos.
Sua mão paternal, que se apraz em expandir sobre todas as suas obras um reflexo das suas infinitas perfeições, lhes havia dado os seus dons mais esplendentes.
Às qualidades super-excelentes de sua natureza, acrescentou as abundâncias da sua graça: fê-los em tudo semelhantes aos Espíritos sublimes que estão na sua glória e felicidade.
Distribuídos por todas as ordens e misturados a todos os graus, tinham eles o mesmo objetivo e os mesmos destinos.
Seu chefe foi o mais belo dos arcanjos.
Eles mesmos teriam podido merecer a sua confirmação de justos para sempre e a sua admissão no eterno gozo da felicidade dos céus.
Esta última graça teria completado todos os favores que até então lhes tinham sido feitos, mas deveria ser o preço de sua docilidade e eles se tornaram indignos dela.
Perderam-se por uma revolta audaciosa e insensata.

O que os impediu de serem perseverantes? Qual a verdade que não haviam conhecido? Que ato de fé e de adoração recusaram a Deus? A Igreja e os anais da história santa nada dizem a respeito de maneira positiva, mas parece certo que não aceitaram a mediação do Filho de Deus para eles mesmos nem a exaltação da natureza humana em Jesus Cristo.

O Verbo Divino, que fez todas as coisas, é também o único mediador e salvador no Céu e na Terra.
O destino sobrenatural só foi dado aos anjos e aos homens na previsão de sua encarnação e de seus méritos.
Porque não há nenhuma proporção entre as obras dos Espíritos mais eminentes e essa recompensa que é o próprio Deus em si mesmo.
Nenhuma criatura teria podido chegar até esse ponto sem essa intervenção maravilhosa e sublime de caridade.
Ora, para cobrir a distância infinita que separa a essência divina das obras de suas próprias mãos, era necessário que ele reunisse na sua pessoa os dois extremos e associasse a sua divindade à natureza do anjo ou à do homem: ele preferiu a natureza humana.

Esse plano, concebido desde toda a eternidade, foi revelado aos anjos muito tempo antes da sua realização.
O Homem-Deus lhes foi mostrado no futuro como Aquele que devia confirmá-los na graça e introduzi-los na glória, com a condição de que o adorassem na Terra durante a sua missão, e no Céu pelos séculos dos séculos.
Revelação inesperada, visão arrebatadora para os corações generosos e reconhecidos, mas mistério profundo e humilhante para os Espíritos soberbos!

Este destino sobrenatural, o peso imenso dessa glória que lhes era proposta não seria unicamente a recompensa de seus méritos pessoais! Jamais se poderiam atribuir, por si mesmos, os títulos da sua posse! Um mediador entre eles e Deus, que ofensa feita à sua dignidade! A preferência gratuita pela natureza humana, que injustiça! Que atentado aos seus direitos! Essa humanidade que lhes era tão inferior, teriam de vê-Ia um dia endeusada pela sua união com o Verbo e assentada à direita de Deus, sobre um trono resplandecente? Concordarão eles a prestar-lhe eternamente as suas homenagens e a sua adoração?

Lúcifer e a terceira parte dos anjos sucumbiram a esses pensamentos de inveja e de orgulho.
São Miguel, e com ele a maioria, exclamaram: quem é semelhante a Deus? Ele é o senhor de seus dons e o soberano Senhor de todas as coisas.
Glória a Deus e ao Cordeiro que será imolado para a salvação do mundo! Mas o chefe dos rebeldes, esquecendo que devia ao seu criador a sua própria nobreza e as suas prerrogativas, preferiu escutar a sua própria temeridade e respondeu: eu mesmo subirei ao céu, estabelecerei a minha morada acima dos astros, me assentarei sobre a montanha da Aliança, nos flancos do Arquilão, dominarei as nuvens mais elevadas e serei semelhante ao Altíssimo.
— Os que partilhavam os seus sentimentos acolheram essas palavras com um murmurar de aprovação, e eles estavam em todas as ordens da hierarquia, mas a sua multidão não os livrou do castigo.

9 — Essa doutrina provoca numerosas objeções:

1ª) Se Satã e os demônios eram anjos, é que eram perfeitos; como, sendo perfeitos, puderam falir, desconhecendo dessa maneira a autoridade de Deus em cuja presença se encontravam? Poder-se-ia ainda conceber que, se tivessem chegado à esta eminência de maneira gradual, após haver passado pelos planos da imperfeição, pudessem ter sofrido uma queda dolorosa.
Mas o que torna o problema mais incompreensível é que são apresentados como tendo sido criados perfeitos.
(36)

A conseqüência dessa teoria é a seguinte: Deus quiz fazê-los seres perfeitos, desde que os cumulou de todos os dons, mas se enganou.
Assim, segundo a Igreja, Deus não é infalível.
(37)

2ª) Desde que nem a Igreja nem os anais da História Sagrada explicam a causa da revolta dos anjos contra Deus, que somente parece certo que foi a recusa de reconhecer a missão futura do Cristo, que valor pode ter o quadro tão preciso e detalhado da cena que então se passou? Em que fonte encontrou ela as expressões tão precisas que reproduziu, como tendo sido pronunciadas na ocasião e até mesmo os simples murmúrios? De duas, uma: ou a cena é verdadeira ou não é.
Se é verdadeira, não há qualquer incerteza.
Então, porque a Igreja não decidiu a questão? Se a Igreja e a História se calam, a causa apenas parece certa, tudo não passa de suposição e a descrição da cena é simples obra de imaginação.
(38,39)

Como sabemos hoje, as nuvens não se encontram além de duas léguas acima da Terra.
Para dizer que dominariam as nuvens mais elevadas, referindo-se às montanhas, era necessário que as cenas se passassem na face da Terra e que nesta, portanto, estivesse a morada dos anjos.
Se essa morada estiver nas regiões superiores, estaria claro que devia situar-se muito além das nuvens.
Atribuir aos anjos uma linguagem tomada de empréstimo à ignorância dos homens seria declarar que estes, hoje, sabem mais do que os anjos.
A Igreja sempre cometeu o erro de não levar em consideração os progressos da ciência.

(36) Essa doutrina monstruosa foi dada por Moisés quando disse (Gênese, Cap, VI, v.
6,7): Ele se arrependeu de haver criado o homem na Terra.
E, tocado de dor até o mais fundo do coração, disse: exterminarei da Terra o homem que criei, exterminarei tudo, desde o homem até os animais, desde os que rastejam no solo até os pássaros do céu, porque eu me arrependo de os haver feito.

Um Deus que se arrepende daquilo que fez não é perfeito nem infalível: portanto, não é Deus.
Essas são, não obstante, as palavras que a Igreja proclama como verdades sagradas.
Por outro lado, não se percebe, de maneira alguma, o que havia de comum entre os animais e a perversidade dos homens, para merecerem aqueles a sua exterminação.
(N.
de Kardec).

(37) A revolução teológica atualmente em curso dá pouca importância ao problema dos anjos, preocupada quase exclusivamente com o homem.
No Catecismo Holandês, que apresenta a fé para adultos, a distinção entre os anjos e os homens permanece a mesma do tempo de Kardec.
Definindo-os, diz o Catecismo: São mensageiros ou virtudes que provêm de Deus, espíritos servidores (Hebreus 1,14) freqüentemente apresentados na Bíblia em forma humana.
Dão forma à bondade de Deus e constituem as grandes virtudes boas que colaboram conosco nesta criação.
Seria a existência deles, hipótese pertencente à concepção do mundo que reina na Sagrada Escritura? Ou faz esta existência parte integrante da revelação de Deus? — Como se vê, os anjos são um mistério.
(N.
do T.
)

3ª) As palavras atribuídas a Lúcifer revelam uma ignorância que nos assustamos de ver num arcanjo que por sua própria natureza e pelo grau que havia alcançado, não devia participar, no tocante à organização do Universo, dos erros e dos preconceitos que os homens professaram até o momento em que a Ciência veio esclarecê-los.
Como poderia ele dizer: Estabelecerei a minha morada acima dos astros, dominarei as nuvens mais elevadas ? É sempre a antiga crença que tem a Terra como centro do Universo, o céu de nuvens que se estende até as estrelas, a região limitada das estrelas formando a cúpula que a Astronomia nos mostra aberta ao espaço infinito, onde as estrelas se espalham.

(38) Encontra-se em Isaias, cap.
XVI, v.
11 e seguintes: Teu orgulho foi precipitado nos infernos, teu corpo morto tombou na Terra, tua cama será a podridão e tua vestimenta será de vermes.
Como tombaste do céu, Lúcifer, tu que parecias tão brilhante como o sol ao meio-dia? Como foste lançado sobre a Terra, tu que golpeavas e ferias as nações, que dizias no teu coração: eu subirei ao céu e estabelecerei meu trono sobre os astros de Deus, e me assentarei sobre a montanha da Aliança, nos flancos do Aquilão, me colocarei sobre as nuvens mais elevadas e serei semelhante ao Altíssimo? — E no entanto foste precipitado desta glória para o inferno, até os mais fundos dos abismos.
— Os que puderem ver-te, aproximando-se de ti, depois de te encararem, dirão: é este o homem que atemorizou a Terra, que encheu de terror os reinos e transformou o mundo num deserto, destruiu as cidades e prendeu em cadeias os que fez prisioneiros?

Essas palavras do profeta não se referem à revolta dos anjos, mas aludiam ao orgulho e à queda do rei de Babilônia que mantinha os judeus no cativeiro, como o provam os últimos versículos.
O Rei de Babilônia é designado, por alegoria, sob o nome de Lúcifer, mas não se faz nenhuma referência à cena acima descrita.
Essas palavras são do Rei, que as dizia no seu coração e se colocava, pelo seu orgulho, acima de Deus, cujo povo retinha cativo.
A predição da libertação dos judeus, da ruina de Babilônia e da derrota dos assírios é, aliás, o objeto exclusivo desse capítulo.
(N.
de Kardec).

(39) Tratando de Satanás, diz o Catecismo Holandês simplesmente que ele pode ser considerado da mesma maneira que os anjos .
.
.
mas em direção oposta: ele é a força reacionária.
Não em pé de igualdade, não tão original nem tão poderoso quanto Deus, como bem nos revela expressamente a Escritura.
É ele a malícia tremenda que vemos agir eficazmente na Humanidade.
Ultrapassa de tão longe a malícia individual que nos perguntamos: qual é a força que está agindo aqui? Uma força meramente humana? — Como se vê, a posição teológica dos nossos dias continua ambígua em referência ao problema dos anjos e demônios.
A Igreja ainda não conseguiu escapar da dualidade mazdeista, considerando Deus como sendo ao mesmo tempo o Poder Supremo e a sua própria oposição.
A crítica de Kardec, portanto, continua válida.
— (O Novo Catecismo, Editora Herder, São Paulo, 1969, com parecer para o Nihil Obstat e Imprimatur, do Cardeal Arcebispo, por Mons.
Dr.
Roberto Mascarenhas Roxo.
O parecer lembra que o Concílio Vaticano reafirmou a tese do IV Concílio de Latrão e esclarece: A fé não define a natureza filosófica desses seres.
Afirma-os espíritos , i.
e.
, de natureza diversa, do homem enquanto simultaneamente espiritual e material ).
(N.
do T.
)

10 — A resposta à primeira objeção se encontra na passagem seguinte:

A Escritura e a Tradição designam o Céu como o lugar em que os anjos foram colocados no momento da sua criação.
Mas esse não é o céu dos céus, o céu da visão beatífica, onde Deus se mostra aos seus eleitos face a face e onde esses eleitos o contemplam sem dificuldades e sem esforços, porque lá não existem mais perigos nem possibilidades de pecar; a tentação e a fraqueza são ali desconhecidas; a justiça, a alegria e a paz reinam com segurança absoluta; a santidade e a glória são imperecíveis.
Era portanto outra região celeste, uma esfera luminosa e afortunada em que essas nobres criaturas, largamente favorecidas pelas comunicações divinas, deviam recebê-las e aceitá-las pela humildade da fé, antes de serem admitidas à condição de verem claramente a realidade na própria essência de Deus.

Disto resulta que os anjos falidos pertencem a uma categoria menos elevada, menos perfeita, de maneira que ainda não haviam atingido a região suprema em que a falta é impossível.
Seja, mas então há uma contradição manifesta porque está dito no texto que: Deus os havia criado em tudo semelhantes aos Espíritos sublimes; que, distribuídos em todas as ordens e misturados a todos os graus, eles tinham o mesmo objetivo e a mesma destinação; que o seu chefe era o mais belo dos arcanjos .
Se eles foram feitos em tudo semelhantes aos outros, não podiam ter uma natureza inferior, e se estavam misturados a todos os graus, não podiam estar num lugar especial.
A objeção, portanto, subsiste em toda a sua inteireza.

11 — Há ainda outra que é, inegavelmente, a mais grave e a mais séria.

Está escrito: Esse plano (a mediação de Cristo) concebido desde toda a eternidade, foi revelado aos anjos muito tempo antes da sua realização.
Deus sabia, portanto, desde toda a eternidade, que os anjos, tanto quanto os homens, tinham necessidade dessa mediação.

Sabia, ou não sabia que certos anjos falhariam, que a sua queda acarretaria para eles a condenação eterna e sem esperança de retorno; que eles seriam destinados a tentar os homens e que estes, os que se deixassem seduzir, teriam a mesma sorte.

Se Deus sabia tudo isso, então criou os anjos, em conhecimento de causa, para a perda irrevogável e para por a perder a maior parte do gênero humano.
Por mais que se faça, é impossível conciliar a sua criação, em face de semelhante previsão, com a sua soberana bondade.
Se, por outro lado, ele nada sabia, não era onisciente nem todo-poderoso.
Num e noutro caso, temos a negação de atributos sem a plenitude dos quais Deus não seria Deus.

12 — Se admitirmos a falibilidade dos anjos, semelhante à dos homens, a punição é uma conseqüência natural e justa da falta cometida, desde que se admita ao mesmo tempo a possibilidade do resgate para o retorno ao bem, à reintegração na graça após o arrependimento e a expiação.
Não haveria nada que então desmentisse a bondade de Deus.
Deus sabia que eles faliriam e seriam punidos, mas sabia também que o castigo temporário seria um meio de fazê-los compreender a própria falta e portanto reverteria em seu benefício.

Assim se cumpririam estas palavras do profeta Ezequiel: Deus não quer a morte do pecador, mas a sua salvação.
(Ver cap.
VII, nº 20).
O que seria a negação da bondade de Deus é a inutilidade do arrependimento e a impossibilidade do retorno ao bem.
Nessa hipótese é rigorosamente exato dizer-se que: Esses anjos, desde a sua criação, pois que Deus não o podia ignorar, foram destinados ao mal pela eternidade e predestinados a se transformarem em demônios para arrastar os homens ao mal .

13 — Vejamos agora qual é a sorte destes anjos e o que eles fazem:

Mal eclodira a revolta na linguagem dos Espíritos, quer dizer, nos impulsos dos seus pensamentos, foram eles banidos irrevogavelmente da cidade celeste e precipitados no abismo.

Por essas palavras entendemos que eles foram relegados a um lugar de suplícios onde tivessem de sofrer a penalidade do fogo, conforme o que diz o texto do Evangelho, que procede das próprias palavras do Salvador: Ide, malditos, ao fogo eterno que foi preparado para o demônio e seus anjos.
São Pedro diz expressamente: Que Deus os enviou às cadeias e às torturas do inferno; mas nem todos ficam ali perpetuamente; somente no fim do mundo é que serão encerrados para sempre com os condenados.
Atualmente Deus ainda permite que eles ocupem um lugar na criação a que pertencem, ordem das coisas à qual se liga a sua existência, nas relações enfim que eles devem ter com os homens e das quais abusam da maneira mais perniciosa.
Enquanto uns permanecem na sua morada tenebrosa, servindo de instrumento à justiça divina, contra as almas infortunadas que seduziram, numerosos outros, formando legiões infinitas e invisíveis, sob a conduta de seus chefes, moram nas camadas inferiores da nossa atmosfera e percorrem todas as partes do globo.
Estão infiltrados em tudo que se passa neste mundo e na maioria das vezes desempenham o papel mais ativo.

No que concerne às palavras do Cristo sobre o suplício do fogo eterno, ver o capítulo IV, intitulado O Inferno.

14 — Segundo esta doutrina, uma parte dos demônios fica somente no inferno enquanto a outra erra em liberdade, intrometendo-se em tudo que se passa neste mundo, divertindo-se em praticar o mal, e isso até o fim do mundo, cuja data indeterminada não chegará provavelmente tão cedo.
Mas por que essa diversidade? São estes menos culpados? Seguramente não.
A menos que se revezem nos seus papéis, o que parece resultar desta passagem: Enquanto uns permanecem na sua morada tenebrosa e servem de instrumento à justiça divina contra as almas infortunadas que seduziram .

Suas funções consistem, pois, em atormentar as almas que seduziram.
Assim, não estão encarregados de punir as que são culpadas de faltas livre e involuntariamente cometidas, mas aquelas que cairam pelas suas próprias provocações.
São, ao mesmo tempo, a causa da falta, e o instrumento do castigo.
E, coisa que a justiça humana por mais imperfeita não admitiria, a vítima que sucumbe por fraqueza, na ocasião preparada para isso, é punida tão severamente como o agente provocador que empregou contra ela a artimanha e a astúcia.
A punição é até mais severa, porque ela vai ao inferno ao deixar a Terra, para dali nunca mais sair, sofrendo sem trégua nem perdão pela eternidade, enquanto aquele que foi a causa da sua queda goza de uma dilação de prazo, em liberdade até o fim do mundo! A justiça de Deus não seria então mais perfeita que a dos homens?

15 — Isso não é tudo.
Deus permite que eles ocupem ainda um lugar na criação, nas relações que devem ter com os homens e das quais abusam da maneira mais perniciosa.
Deus poderia ignorar que eles iam abusar da liberdade que lhes concedia? Então porque a concedeu? Foi pois em conhecimento de causa que deixou as suas criaturas à mercê dos demônios, sabendo, em virtude da sua infinita presciência, que elas sucumbiriam e teriam a mesma sorte dos tentadores.

Não tinham elas a sua própria fraqueza, sem a necessidade de que fossem excitadas ao mal por um inimigo tanto mais perigoso, quanto invisível? Ainda se o castigo fosse apenas temporário e o culpado pudesse salvar-se pela reparação! Mas não: ele é condenado pela eternidade.
Seu arrependimento, seu retorno ao bem, suas lamentações, tudo é sem valor.

Os demônios são assim agentes provocadores predestinados a recrutar almas para o inferno, e isso com a permissão de Deus, que sabia, ao criar essas almas, a sorte que lhes estava reservada.
Que se diria, aqui na Terra, de um juiz que usasse semelhantes meios para encher as prisões? Estranha idéia que nos dão da Divindade de um Deus cujos atributos essenciais são a soberana justiça e a soberana bondade!

E é em nome de Jesus Cristo, daquele que só pregou o amor, a caridade e o perdão, que se ensinam semelhantes doutrinas! Houve um tempo em que esses absurdos passavam despercebidos.
Não podiam ser compreendidos, não chocavam os sentimentos.
O homem, arcado ao jugo do despotismo, submetia a sua razão de maneira cega, ou melhor, abdicava da razão.
Mas hoje a hora da emancipação já soou.
Ele compreende a justiça e deseja tê-la durante a sua vida e após a sua morte.
Eis porque ele clama: isso não é assim, não pode ser assim ou Deus não é Deus!

16 — O castigo segue por toda a parte esses seres decaídos e malvistos, que levam sempre consigo o seu próprio inferno: eles não têm paz nem repouso; as próprias doçuras da esperança foram transformadas para eles em amarguras.
A esperança lhes é odiosa.
A mão de Deus os feriu no ato mesmo do pecado e a sua vontade se obstinou no mal.
Tornados perversos, não querem mais deixar de sê-lo e o são para sempre.

Após o pecado eles são o que o homem é depois da morte.
A reabilitação dos que caíram é pois impossível.
Sua perda é sem reparação e eles perseveram no seu orgulho face a face com Deus, no seu ódio contra Cristo, na sua inveja da humanidade.

Não tendo podido conquistar a glória do céu, pelo excesso de suas ambições, procuram estabelecer o seu império na Terra e dela afastar o reino de Deus.
O Verbo feito carne cumpriu, apesar deles, os seus desígnios para a salvação e a glória da humanidade.
Empregam, pois, todos os seus meios para levar à perdição às almas resgatadas.
A astúcia e a importunação, a mentira e a sedução são utilizadas para as conduzir ao mal e à ruína completa.

Com tais inimigos, a vida do homem, desde o berço até o túmulo, não pode ser, desgraçadamente, senão uma luta perpétua, porque eles são poderosos e infatigáveis.

Esses inimigos, com efeito, são os mesmos que, depois de introduzirem o mal no mundo, cobriram a Terra com as trevas espessas do erro e do vício.
São os que, durante muitos séculos, fizeram adorar-se como deuses reinando como senhores sobre os povos da Antigüidade.
São, enfim os que ainda exercem o seu império tirânico sobre as regiões idólatras, fomentando a desordem e o escândalo até mesmo no seio das sociedades cristãs.

Para se compreender todos os recursos de que eles dispõem para o serviço da sua maldade, basta notar que eles nada perderam das prodigiosas faculdades, que são o apanágio da natureza angélica.
Sem dúvida, o futuro e sobretudo a ordem sobrenatural tem mistérios que Deus se reserva e que eles não podem descobrir.
Mas a sua inteligência é muito superior à nossa, porque eles percebem num simples olhar os efeitos ainda nas suas causas, e as causas nos seus efeitos.
Essa penetração lhes permite anunciar com antecedência acontecimentos que escapam às nossas conjeturas.
A diversidade e a distância dos lugares desaparecem diante da sua agilidade.
Mais rápidos que o raio, mais instantâneos que os pensamentos, eles se encontram quase ao mesmo tempo sobre diversos pontos do globo e podem descrever de longe os acontecimentos que testemunham na mesma hora em que eles se verificam.

As leis gerais pelas quais Deus rege e governa o universo não estão ao seu sabor: eles não podem interrogá-las, nem portanto predizer ou operar verdadeiros milagres, mas possuem a arte de imitar e falsificar as obras divinas dentro de certos limites.
Sabem quais os fenômenos que resultam da combinação dos elementos e predizem com segurança os resultados de combinações naturais como os das combinações que podem fazer por si mesmos.
Daí esses oráculos numerosos, os vaticínios extraordinários de que os livros sagrados e profanos nos guardaram a lembrança e que serviram de base e de alimento para todas as superstições.

A sua substância simples e imaterial escapa aos nossos olhos.
Eles estão ao nosso lado sem que os percebamos; tocam a nossa alma sem tocar os nossos ouvidos; cremos obedecer ao nosso próprio pensamento, quando estamos sofrendo as suas tentações e a sua funesta influência.
Ao contrário disso, as nossas disposições são conhecidas por eles, através das impressões que nos fazem sentir, o que lhes permite nos atacarem, em geral pelo nosso lado mais fraco.
Para nos seduzirem com mais segurança costumam apresentar-nos idéias e sugestões de acordo com as nossas tendências.
Modificam a sua atitude segundo as circunstâncias e de acordo com os traços característicos de cada temperamento.
Mas as suas armas favoritas são a mentira e a hipocrisia.

17 — O castigo, dizem, os segue por toda parte.
Não têm mais nem paz nem repouso.
Isso não destrói a observação referente ao descanso dos que não estão no inferno, descanso tanto menos justificado, quanto, estando de fora praticam ainda muito maior mal.
Sem dúvida, eles não são felizes como os anjos bons, mas seria contada a liberdade de que gozam? Se eles não têm a felicidade moral que a virtude proporciona, são entretanto menos infelizes que os seus cúmplices que se acham nas chamas.
Além disso o malvado sempre desfruta uma espécie de prazer ao praticar o mal com toda a liberdade.
Pergunte-se a um criminoso se para ele tanto faz estar na prisão ou percorrer os campos cometendo os seus crimes à vontade.
A situação é exatamente a mesma?

O remorso, dizem, o persegue sem tréguas nem piedade.
Mas se esquecem de que o remorso é precursor imediato do arrependimento, quando já não é o próprio arrependimento.
Dizem: Tornando-se perversos, eles não querem mais deixar esse caminho e o seguem para sempre.
Mas então, se eles não querem deixar de ser perversos, é que não sofrem remorsos.
Se tivessem o menor pesar, cessariam de praticar o mal e clamariam pelo perdão.
Assim, o remorso não é um castigo para eles.

18 — Eles estão após o pecado como o homem após a morte.
A reabilitação.
dos que cairam é pois impossível.
De onde vem essa impossibilidade? Não se compreende que decorra da semelhança de situação com a do homem após a morte, proposição que, aliás, não é bastante clara.
Essa impossibilidade virá da sua própria vontade ou da vontade de Deus? Se for da sua vontade, denota extrema perversidade, um endurecimento absoluto no mal.
Nesse caso, não se compreende que seres tão essencialmente maus tenham jamais podido estar entre os anjos virtuosos e que, durante o tempo infinito que passaram entre eles, não tenham deixado perceber nenhum sinal de sua maldade natural.
Se for da vontade de Deus, ainda menos se compreende que lhes possa ser dado, como castigo, a impossibilidade de voltar ao bem, após a prática da primeira falta.
O Evangelho não ensina nada semelhante.

19 — Sua perda, acrescenta, é desde então irremediável e eles perseveram no seu orgulho face a face com Deus.
De que lhes serviria não perseverar desde que todo o arrependimento é inútil ? Se tivessem a esperança de uma reabilitação, a qualquer preço que fosse, o bem poderia ser alguma coisa para eles, enquanto dessa maneira não é nada.
Se perseveram no mal é porque a porta da esperança foi fechada para eles.
E porque Deus a fechou? Para se vingar da ofensa que lhe fizeram ao faltarem com a submissão.
Assim, para vingar o seu ressentimento contra alguns culpados, Deus prefere vê-los, não somente sofrer, mas continuarem a praticar o mal em lugar do bem, induzindo ao mal e lançando à perdição eterna todas as criaturas do gênero humano, quando bastaria um simples ato de clemência para evitar tamanho desastre, um desastre já predeterminado desde toda a eternidade?

Seria, por acaso, esse ato de clemência uma graça pura e simples, que pudesse reverter em encorajamento ao mal? Não, mas um perdão condicional, subordinado a um futuro e sincero retorno ao bem.
Em lugar de uma palavra de esperança e misericórdia, fizeram Deus dizer: pereça toda a raça humana, ante a minha vingança! E admiram-se que com uma tal doutrina haja incrédulos e ateus! Foi assim que Jesus nos apresentou o seu Pai? Ele que nos fez do esquecimento e do perdão das ofensas uma lei expressa, que nos ensinou a pagar o mal com o bem, que colocou o amor pelos inimigos no primeiro lugar entre as virtudes que devem nos conduzir ao céu, quereria então que os homens fossem mais justos, melhores, mais compassivos que o próprio Deus?

Os demônios segundo o Espiritismo

20 — Segundo o Espiritismo, nem os anjos nem os demônios são seres à parte: a criação dos seres inteligentes é una.
Ligados a corpos materiais, esses seres constituem a humanidade que povoa a Terra e os outros planetas habitados; sem esses corpos, constitui o mundo espiritual ou dos Espíritos, que povoam os espaços.
Deus os criou perfectíveis, dando-lhes por objetivo a perfeição com uma conseqüente felicidade, mas não lhes deu a perfeição.
Deus quiz que eles devessem a perfeição ao seu esforço pessoal, a fim de que tivessem o seu próprio mérito.
Desde o instante da sua formação eles começam a progredir, seja através da encarnação, seja no estado espiritual.
Chegados ao apogeu, tornam-se Espíritos puros ou anjos, segundo a denominação vulgar.
Dessa maneira, desde o embrião do ser inteligente até o anjo, há uma cadeia contínua em que cada elo representa um grau de progresso.

Disso resulta que existem espíritos em todos os graus de adiantamento moral e intelectual, segundo os quais eles se encontram no alto, em baixo ou no meio da escala.
Há espíritos, portanto, em todos os graus de saber e de ignorância, de bondade e de maldade.
Nas camadas inferiores há os que são ainda profundamente inclinados ao mal e nele se comprazem.
Podem chamá-los demônios, se o quizerem porque são capazes de todas as maldades atribuídas a estes.
Se o Espiritismo não lhes dá esse nome é para não ligá-los à idéia de seres distintos da humanidade, de uma natureza essencialmente perversa, destinada eternamente ao mal e incapazes de progredir para o bem.

21 — Segundo a doutrina da Igreja, os demônios foram criados bons e se tornaram maus por sua desobediência: são os anjos decaídos, que tentaram colocar-se em lugar de Deus no alto da escala e dela caíram.
Segundo o Espiritismo, são espíritos imperfeitos mas que terão de melhorar-se; encontram-se ainda embaixo da escala, mas subirão.

Os que, por sua apatia, sua negligência, sua obstinação e má vontade permanecem por mais tempo nos planos inferiores, sofrem as conseqüências dessa situação e o hábito do mal lhes torna mais difícil sairem dali.
Mas chega o tempo em que se cansam dessa existência penosa e dos sofrimentos que nela enfrentam.
É então que, comparando sua situação à dos bons Espíritos, compreendem que o seu interesse está na prática do bem e procuram melhorar-se.
Mas o fazem de sua própria vontade, sem serem constrangidos a isso.

Eles estão submetidos à lei do progresso em virtude da sua própria aptidão para progredir, mas não podem progredir contra a sua própria vontade.
Deus lhes concede incessantemente os meios de progredir, mas eles são livres de os aproveitar ou não.
Se o progresso fosse obrigatório, eles não teriam mérito algum, e Deus quer que eles tenham o mérito de seus esforços.
Ele não eleva ninguém por meio de privilégio, mas o primeiro lugar está sempre aberto a todos e ninguém chega a ele sem os próprios esforços.
Os anjos mais elevados conquistaram o seu grau como os outros, passando pela rota comum.

22 — Chegados a um certo grau de evolução, os Espíritos recebem missões que estão em relação com seu adiantamento.
Cumprem todas aquelas que são atribuídas aos anjos das diversas ordens.
Como Deus tem sempre criado, desde toda a eternidade, também de toda a eternidade se encontram espíritos em condições de satisfazer a todas as necessidades do governo universal.
Uma só espécie de seres inteligentes, submetidos à lei do progresso, é pois suficiente.
Essa unidade da criação, tendo todos o mesmo ponto de partida, o mesmo caminho a seguir e elevando-se pelo seu mérito, corresponde bem melhor à justiça de Deus que a criação de espécies diferentes, mais ou menos favorecidas de dons naturais que representariam outros tantos privilégios.

23 — A doutrina vulgar sobre a natureza dos anjos, dos demônios e das almas, não admitindo a lei do progresso e considerando os seres, não obstante, em diversos graus, nos leva à conclusão de que eles são o produto de diversas criações especiais.
Ela faz assim, de Deus, um Pai parcial, concedendo tudo a alguns de seus filhos, enquanto impõe a outros o mais rude trabalho.

Não é de se admirar que durante muito tempo os homens nada tenham visto de chocante nessas preferências, pois que eles também procediam assim com seus próprios filhos através do direito da primogenitura e dos privilégios de nascença.
Poderiam eles pensar que erravam mais do que Deus? Mas hoje as idéias se ampliaram e eles vêem as coisas com mais clareza, têm noções mais precisas de justiça e as desejam para si mesmos.
Se não encontram sempre essa justiça na Terra, esperam pelo menos encontrá-la no céu.
Eis porque toda doutrina cuja justiça divina não lhes seja apresentada na sua maior pureza repugna-lhes a razão.
(40)

(40) Não houve modificações fundamentais na Teologia Católica no tocante a essas questões.
Se Teilhar de Chardin admite, na sua revolução teológica, que a alma condenada fica em tempo de espera, não é expulsa do pleroma , o mesmo não acontece na doutrina oficial.
O Catecismo Holandês avançou um pouco, mas o parecer da Comissão Cardinalícia, assinado por Monsenhor Mascarenhas Roxo, é taxativo a respeito: Em resumo as almas que não necessitam de purificação entram na posse imediata da vida eterna, como presença face a face com a Trindade (a visão beatífica).
Aquelas que necessitam de purificação devem cumpri-Ia no purgatório.
As que são afetadas por pecado grave ou mortal sofrem imediatamente a condenação eterna do inferno.
— O relator acentua que o Catecismo não nega nem põe em dúvida nada disso , mas adverte que a ressurreição final será no fim da História , o que vale dizer, no fim do mundo, quando se dará a parusia ou segunda vinda do Senhor .
Porque isso o Catecismo pôs em dúvida.
A crítica de Kardec, portanto, permanece válida.
(N.
do T.
)

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