Livro Céu e o Inferno – CAPÍTULO II – O MEDO DA MORTE – Allan Kardec 0/5 (1)

CAPÍTULO II O MEDO DA MORTE

Causas do medo da morte –

Por que os espíritas não têm medo da morte

Causas do medo e da morte

O homem, independente da escala a que pertença, desde o estado de selvageria, tem um sentimento inato sobre o futuro.
Sua intuição lhe diz que a morte não é a última palavra em sua existência e que aqueles cuja perda nós lamentamos não estão perdidos, sem retorno.
A crença no futuro é intuitiva e é infinitamente mais geral do que a crença no nada.
Como explicar então que, entre aqueles que acreditam na imor-talidade da alma, se encontre tanto apego às coisas terrenas e um medo tão grande da morte?

O medo da morte é um efeito da sabedoria da Providência e uma consequência comum a todos os seres vivos.
É necessário, enquanto o homem não esteja suficientemente esclarecido sobre as condições da vida futura, como um contrapeso ao exercício contínuo e progressivo de aperfeiçoamento que – sem esse freio – o levaria a deixar, prematura-mente, a vida terrestre e a negligenciar o trabalho aqui no planeta, que deve servir a seu próprio progresso.

por isso que, entre os povos primitivos, o futuro era apenas uma vaga intuição, mais tarde uma simples esperança e, enfim, uma certeza, mas ainda contrabalançada por um secreto apego à vida corporal corporal.

3.
À medida que o homem compreende melhor a vida futura, diminui seu medo da morte.
Ao mesmo tempo, compreendendo melhor sua missão na Terra, espera seu fim com mais calma, mais resignação e sere-nidade.
A certeza da vida futura dá outro sentido às suas ideias, outro objetivo a seus trabalhos.
Antes de ter certeza, ele só trabalha por sua vida presente.
Com essa certeza, ele trabalha, visando ao futuro, sem negligenciar o presente porque sabe que seu futuro depende da direção

– boa ou má – que escolhe em seu presente.

A certeza de reencontrar seus amigos após a morte, de continuar as relações que teve na Terra, de não perder o fruto de nenhum trabalho, de crescer sem parar em inteligência e perfeição, lhe dá a paciência para esperar e a coragem para suportar as fadigas momentâneas da vida terrena.
A solidariedade que ele vê se estabelecer entre os vivos e os mortos lhe faz compreender aquela que deve existir na Terra.
A partir daí, a fraternidade tem sua razão de ser e a caridade é um fim em si mesma, no presente e no futuro.

4.
Para se livrar do medo da morte, é preciso conseguir encará-la como é realmente, isto é, pelo pensamento, penetrar no mundo espi-ritual e assim compreendê-lo o mais exatamente possível.
Isso dará ao Espírito encarnado certo desenvolvimento e certa aptidão para se separar da matéria.

Para aqueles que não estão suficientemente adiantados, a vida mate-rial tem mais importância que a espiritual.
O homem que se apega às aparências só vê a vida do corpo, enquanto a vida real está na alma.
Por esse ponto de vista, se o corpo morre, tudo está perdido e ele se desespera.

Se, em vez de se concentrar na aparência, ele se colocar diante da real fonte de vida, a alma, que a tudo sobrevive, se preocupará menos com corpo, fonte de tantas misérias e dor.
Mas, para essa postura, é preciso uma força que o Espírito só adquire com o amadurecimento.

O medo da morte vem, então, da falta de conhecimento sobre a vida futura, mas é um sinal da necessidade de viver e do receio de que a destruição do corpo seja o fim de tudo.
Esse medo é provocado pelo secreto desejo da sobrevivência da alma, ainda que velado pela incerteza.

O medo diminui, à medida que a certeza se forma, e desaparece, quando a certeza se completa.

Eis o lado providencial da questão: não deslumbrar o homem, cuja razão não esteja suficientemente preparada para uma perspectiva muito positiva e muito sedutora no futuro, a ponto de fazê-lo negligenciar o presente, necessário a seu progresso material e intelectual.

Esse estado de coisas é mantido e prolongado por causas pura-mente humanas, que desaparecerão com o progresso.
A primeira é a forma sob a qual se apresenta a vida futura, que poderia ser suficiente a inteligências menos desenvolvidas, mas que não satisfaria as exigên-cias da razão de homens mais reflexivos.
Esses últimos se questionarão: desde que se apresentem princípios contraditórios com a lógica e com os dados positivos da Ciência, eles não são verdadeiros.
Daí a incredulidade de alguns e a crença misturada com a dúvida, de muitos.

A vida futura para esses é uma ideia vaga, mais uma possibilidade do que uma certeza absoluta.
Acreditam, gostariam que assim fosse e, apesar de tudo, se questionam: se, entretanto, não for assim?! O presente é positivo, ocupemo-nos dele, em primeiro lugar, o futuro virá por acréscimo.
E ainda se perguntam: o que é em definitivo a alma? Um ponto, um átomo, uma faísca, uma chama? Como sente? Como enxerga? Como percebe? A alma não lhes é uma realidade efetiva, mas uma abstração.

Os seres que lhes são caros, reduzidos ao estado de átomos, em seu modo de pensar, estão, por assim dizer, perdidos e não têm mais as qualidades pelas quais se fizeram amados.
Eles não compreendem nem o amor de uma faísca, nem o amor que se pode ter por ela.
E eles mesmos se sentem pouco satisfeitos em ser transformados em uma substância simples e indivisível.
É grande o número de pessoas que assim pensam, daí o retorno ao positivismo da vida terrestre, que tem qualquer coisa de mais substancial.

Nota da tradução: Como no capítulo anterior, tudo indica que o autor se refere à influência da cor-rente filosófica positivismo, defendida por Augusto Comte, em meados do século XIX, “substituin-do Deus pela ciência”, isto é, defendendo a validade dos métodos científicos para explicar a realidade.
Pretendia substituir as explicações teológicas e filosóficas da realidade.

Outra razão que prende às coisas terrenas, mesmo aqueles que acreditam mais firmemente na vida futura, resulta da impressão que conservam do ensinamento que lhes foi dado na infância.
Há que se convir que o quadro apresentado pela religião sobre esse assunto não é muito sedutor nem muito consolador.

De um lado, se veem as contorções de condenados, que expiam em torturas e chamas sem fim seus erros de um momento, para os quais os séculos se sucederão aos séculos, sem esperança de abrandamento ou de piedade e o que é mais cruel ainda: não há possibilidade de arrependi-mento.
Por outro lado, as almas enfraquecidas e sofredoras do purga-tório, esperando sua liberdade, não por seus esforços de progresso, mas pela boa vontade dos vivos, que rezarão por elas.

Essas duas categorias são a imensa maioria da população do outro mundo.
Acima, paira aquela categoria muito restrita dos eleitos, desfru-tando, pela eternidade, de uma beatitude contemplativa.
Essa eterna inutilidade – sem dúvida preferível ao nada – não deixa de ser de uma cansativa monotonia.
Também se veem, nas pinturas que retratam os bem-aventurados, figuras angélicas que manifestam mais o tédio que a verdadeira felicidade.

Esse estado não satisfaz nem as aspirações nem a ideia instintiva do progresso, que parece a única compatível com a felicidade absoluta.
É difícil conceber que o selvagem ignorante, com um senso moral obtuso, pelo simples fato de ter recebido o batismo, esteja ao mesmo nível daquele que chegou ao mais alto grau da Ciência e da moralidade prática, depois de muitos anos de trabalho.
É ainda menos concebível que uma criança, morta com pouca idade, antes de ter a consciência de si mesma e de seus atos, desfrute dos mesmos privilégios, apenas pelo fato de ter havido uma cerimônia, da qual não participou por sua vontade.
Esses pensamentos preocupam os mais fervorosos, por pouco que eles reflitam.

O trabalho que se completa na Terra, sem se direcionar para a felicidade futura, a facilidade com que alguns acreditam conseguir essa felicidade, pelas práticas exteriores e até mesmo com dinheiro, sem uma reforma séria do caráter e dos costumes, fazem com que esses prazeres tenham seu valor para este mundo.

Muita gente acredita que, já que seu uturo está assegurado, pelo cumprimento de algumas fórmulas ou por dons póstumos, não precisam se privar de nada.
Acreditam que seria desnecessário se impor qualquer tipo de sacrifício ou preocupação com o próximo, já que é possível encontrar a salvação, trabalhando-se cada um por si mesmo.

Certamente não são todos os que pensam assim, porque há honrosas exceções, mas não se pode ignorar que essas exceções não são a maioria, principalmente entre as pessoas pouco esclarecidas.
A ideia de felicidade no outro mundo não mantém o apego aos bens, portanto, não sustenta egoísmo.

Além disso, faz parte do costume lamentar a morte e recear a passagem da Terra para o Céu.
A morte é cercada de cerimônias lúgubres, que mais aterrorizam do que provocam sentimento de espe-rança.
Representa-se a morte sempre com um aspecto repulsivo e nunca como um sono de transição.
Todos os símbolos da morte lembram a destruição do corpo e o mostram horrível e seco, nenhum representa a alma radiante, se separando de seus laços terrenos.
A partida deste mundo é acompanhada de lamentos dos que ficam, como se estivesse acontecendo uma grande desgraça para os que se vão.
Despede-se dos que se vão com um eterno adeus, como se nunca mais houvesse um reencontro.
O que se lamenta por eles é a perda dos prazeres daqui, como se eles não fossem encontrar muitos maiores prazeres no além–túmulo.
Dizem: que infelicidade morrer jovem, rico, feliz e com um futuro brilhante!

A ideia de uma situação mais feliz não está enraizada no pensamento e passa por ele, muito levemente.
Tudo leva ao horror pela morte, em vez de fazer nascer a esperança.

O homem levará muito tempo para se livrar de seus preconceitos, e ele o fará à medida que consolidar sua fé e tiver uma ideia mais sadia da vida espiritual.

Além disso, a crença comum coloca as almas em regiões acessí-veis apenas ao pensamento, como estranhas aos que continuam vivos.

A própria Igreja coloca entre vivos e mortos uma barreira intranspo-nível, afirmando que todas as relações estão cortadas e que é impossível uma comunicação entre eles.
Se as almas estão no inferno, está defi-nitivamente perdida a esperança de revê-las, a menos que se vá para lá também.
Se as almas estão entre os eleitos, vivem completamente absorvidas pela beatitude contemplativa.
Portanto, impõe -se uma tal distância entre vivos e mortos, que se encara a separação pela morte como se fosse eterna.
É por isso que se prefere que os seres amados permaneçam por perto, ainda que sofrendo, a vê- los partir, mesmo que seja para o Céu.
De resto, a alma, no Céu, está realmente feliz ao ver, por exemplo, seu filho, seu pai, sua mãe ou seus amigos queimando eternamente?

Por que os espíritas não têm medo da morte

A Doutrina Espírita muda completamente a maneira de encarar o futuro.
A vida futura deixa de ser uma hipótese para ser uma reali-dade.
O estado das almas, depois da morte, deixa de ser um sistema, para ser um resultado de observação.
Erguido o véu, o mundo espiritual se apresenta em toda sua realidade prática, não como uma descoberta engenhosa dos homens, mas porque os habitantes daquele mundo espi-ritual vêm contar sua situação.
Então, nós os vemos em todos os graus da escala espiritual, em todas as fases da felicidade e da infelicidade e assistimos a todas as peripécias da vida de além-túmulo.
Aí está por que os espíritas encaram com calma e serenidade a morte e seus últimos momentos na Terra.
Porque estão sustentados não só pela esperança, mas pela certeza de que a vida futura é a continuação, em melhores condições, da vida presente.
E eles a esperam com a mesma confiança com que aguardam o nascer do Sol, depois de uma noite de tempestade.
Eles confiam porque são testemunhas dos fatos, que estão em acordo com a Lógica, a Justiça e a Bondade de Deus e com Suas mais íntimas aspirações.

Para os espíritas, a alma não é apenas uma abstração, mas tem um corpo etéreo, que pode ser definido e compreendido pelo pensamento.
Assim, já é possível ter uma ideia clara de sua individualidade, aptidões e percepções.
A lembrança de nossos entes queridos firma-se em algo real, com uma forma concreta, como seres vivos, e não apenas como chamas furtivas que nada nos representam.
Além disso, em vez de estar perdidas nas profundezas do espaço, se encontram ao nosso redor.
O mundo corpóreo e o mundo espiritual estão em permanentes relações e se assistem reciprocamente.

Não se permitindo mais a dúvida sobre o futuro, não há mais razão para se ter medo da morte.
Encara-se a aproximação da morte, com sangue frio, como a libertação, a porta para a vida e não a porta para o nada.

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